Grandes incêndios lamentam perdas, em uma década, só em prédios de acervo artístico, histórico e científico. No Centro de São Paulo: Teatro de Cultura Artística (2008), Instituto Butantan (2010), Memorial da América Latina (2013), Centro Cultural Liceu de Artes e Ofícios (2014), Museu da Língua Portuguesa (2015), um dos mais visitados do Brasil e América do Sul, o primeiro do mundo dedicado, exclusivamente, a um idioma. No Rio de Janeiro, um passado mais longe traz o imortalizado Museu de Arte Moderna, consumido pelo fogo em julho de 1978. De mais de mil, restaram 50 peças. Agora, o Museu Nacional: “O estranho não é que tenha acontecido, mas o sentimento e a percepção de que não tenha acontecido antes. Todas as declarações repetem essa mesma cantilena: era uma tragédia anunciada”. Marcio Doctors, curador da Casa Museu Eva Klabin (Folha de S. Paulo, 15-9-2018), deplora que o legado cultural do país esteja a se transformar num corpo sem alma, museus sem acervo, como os muitos que foram construídos recentemente – o que teme repetir-se com o Museu Nacional.
Problema crônico de negligência, descaso. Em São Paulo, destaque para a política urbana, falha, displicente ou inadequada. Desde os anos 1970, cresce o número de prédios abandonados, ou ocupados, no centro da cidade, uma tendência de degradação urbana da região, ainda não revertida. Esvaziamento do Centro, inchaço das periferias. Exemplo gritante é o Edifício Wilton Paes de Almeida, que pegou fogo em 1º. de maio passado, e levou de arrastão boa parte da Igreja Evangélica Luterana. Debate na web (22 de maio) sobre a revitalização da área, promovido pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, reuniu os arquitetos e urbanistas Nabil Bondeski, Elisabete França e o jornalista Raul Juste Lores. Indagação básica: São Paulo estaria capacitado a fazer o que outras grandes cidades do mundo conseguiram, recuperando os centros urbanos como espaços democráticos de maior convivência e integração social?
Lado a lado, política urbana e patrimônio cultural vêm merecendo questionamento tão voraz quanto os desafios que o tempo impõe – evoluir tecnológico, novas formas de trabalho e afins. Tentativas de respostas para tanto desgaste e desastre promovem solidariedade e discussão. Ciclo de conferências na Academia Brasileira de Letras (outubro) vem de expor, sob a temática geral ‘Patrimônio cultural brasileiro: abordagens, desafios, políticas’, questões legais, a trajetória do patrimônio, dicotomias. Inquietam, de fato, os acadêmicos. Já em 2017, realizaram seminários sobre o modelo policial brasileiro e cidades seguras, sobre o povo e a política.
Memória histórica. Em visita a São Paulo, para palestra e debate (setembro), o arqueólogo, historiador de arte e autor Salvatore Settis lança a semente: já vivem o presente as cidades do futuro. Importam três fatores em convergência: conhecimento e respeito à história, observância das leis, prevalência do interesse público sobre o lucro privado. “Não podemos viver num eterno presente, sem passado. A construção da memória histórica é um ingrediente essencial da vida política, da consciência coletiva, da democracia. Nesse sentido, o que aconteceu no Museu Nacional do Rio é uma perda para o mundo todo”.
Bibliotecária do Museu da República (obras raras), Valéria Gauz desabafa, ressaltando a importância e a lastimosa situação “desse grande museu perdido, irrecuperavelmente”. Na devastação consequente, as sequelas tendem a perdurar. Cita o extinto Instituto Brasileiro de Museus, Ibram, e a criação da Agência Brasileira de Museus, que escancaram o antes sorrateiro plano de privatização de 29 museus federais. “Um dos grandes argumentos para se privatizar esses museus se prende ao fato de o governo não ter condições de manter esse patrimônio, devido ao seu alto custo”. Lembra ainda os projetos sob a Lei Rouanet, visando a restaurar o Museu Nacional (um específico, para prevenir incêndio), acatados com menos de 10% de interesse do empresariado brasileiro.
Mais recursos. Na vaga do desastre do Museu Nacional do Brasil, o Conselho Internacional de Museus vem a público para conclamar: que os poderes políticos e decisórios, em todo o mundo, concedam recursos adequados e adotem políticas “que permitam a essas instituições culturais desempenharem seu papel vital na sociedade, visando às gerações futuras”. Museus são espelhos da sociedade, define a revista Museum. São uma realidade cultural formada a partir de uma realidade histórica. Guardam em suas coleções, ou escolhas, o conhecimento que advém da educação. Um cenário abrangente – ideológico, histórico, geográfico, naturalista – da marca nacional, que atualiza o presente e o futuro.
Diretor de Urbatopie, o economista e urbanista Jean Haëntjens transpõe a atualidade das grandes metrópoles para o campo político e os desafios civilizacionais. Há que oferecer novas visões do futuro, com valores outros que não o paradigma desgastado de desenvolvimento a qualquer custo. O jogo político terá de estender-se “da vida do bairro à geopolítica planetária”. Para colonizar o espaço público, diz, bastaria acionar a alavanca cultural, com seus diferentes sistemas de valores, conforme a natureza da cidade. Afinal, não se vive nem se pensa da mesma forma em toda parte.
Na inauguração do Louvre Abu Dhabi, em novembro 2017, o presidente da França, Emmanuel Macron, usou de veemência rara: “Nos avaliem, por favor! Não apenas nossos vinhos e fausto, mas também nossa cultura e os valores universais e humanísticos que ela reflete”. Em que pesem as críticas de cultura à venda, o Louvre Abu Dhabi parece, já, um exemplo da glocalização (o global e o local), neologismo criado pela Museum. Um exemplo do que os museus devem ser: grandes centros de pesquisa onde todos os envolvidos fazem pesquisa todos os dias. E onde os acervos extrapolam o conceito de coleções.
Remetendo ao pensamento de Settis, forjamos uma moral para este conto mal- alinhavado. “O capitalismo de hoje tende a dizer que tudo tem seu preço. Há valores que não têm preço. Um é a vida humana. Outro é a memória cultural”.