Caminhos mal traçados

Em meio a uma campanha de desinformação – propositada, mal intencionada, deformada, mascarada, omissória – seja quanto ao terrorismo, russofobia, vitimização do algoz, demonização do rival, ascensão de inimigos novos ou ocultos –, Israel e a Gaza palestina enfrentam-se mais uma vez. Como se fora uma guerra de dois, mas que de fato envolve muito e muitos mais, num território de destino traçado há um século. O autor Mujeeb R. Khan tem uma expressão latina para dizer aquilo de que o ser humano é capaz: summum malum. Presente na Bósnia-Herzegovina, Ruanda, Congo, Israel/Palestina, Golfo Pérsico/Afeganistão. Genocídio e limpeza étnica como produto de programa político cuidadosamente orquestrado, ligado a conquistas e poder, por elites ou indivíduos inclinados à tirania.  

Jon Kimche. Jornalista e autor britânico, diz tudo já no título de seu livro Israel ou Palestina. O detalhe não foge à regra na obra, fartamente documentada, com arquivos que cobrem, em 360 páginas, o período 1917-1973. É o maior jogo de xadrez político de nosso tempo – constata. Tudo começou em Manchester, “o centro da indústria química (em pleno desenvolvimento) na Inglaterra, a pátria da Brunner Mond, que se tornaria a Imperial Chemical Industries, e da Aniline Dyes, grande empresa presidida por Charles Dreyfus, ex-dirigente da Manchester Zionist Association”. Então, a sociedade judaica da cidade tinha 30 mil membros, oriundos da Europa Oriental, e cerca de 3 milhões e meio de judeus espalhados pelo mundo ocidental.

Na Universidade de Manchester, a partir dos cursos de química dirigidos por Chaim Weizmann (o grande articulador do Estado de Israel e seu primeiro presidente, de 1949 a 1952), formou-se um grupo político sionista, preocupado com a dispersão dos judeus e com uma clara determinação: “… que a fórmula (que levaria ao mandato britânico provisório), de um protetorado ou mandato, devesse obrigatoriamente indicar que o objetivo final seria fazer da Palestina uma Palestina judia”. A Declaração de Balfour, 2 de novembro 1917, foi o primeiro passo. Hoje, o lobby sionista nos Estados Unidos mantém o compromisso, pouco importa como. Soma uns 5 milhões de membros.

Edward W. Said. Choque de definições, do autor palestino Edward W. Said (em Reflexões no exílio e outros ensaios, Harvard University Press, 2000), é uma análise crítica da tese de choque das civilizações, de Samuel Huntington. Nele, Said volta a argumentos já expostos em suas próprias obras. “Na Europa de hoje, o que se descreve como “Islã” pertence ao discurso do Orientalismo: uma construção fabricada para atiçar sentimentos de hostilidade e antipatia contra uma parte do mundo que acontece ser de importância estratégica por seu petróleo, sua adjacência ameaçadora ao mundo Cristão, sua formidável história de competição com o Ocidente. Contudo, isto é muito diferente do que vivem os muçulmanos, do que o Islã é realmente. Há um mundo de diferença entre o Islã na Indonésia e o Islã no Egito. Pelo mesmo emblema, a volatilidade da luta de hoje quanto ao significado do Islã é evidente no Egito, onde os poderes seculares da sociedade estão em conflito com vários movimentos de protesto e reformistas islâmicos. Em tais circunstâncias, a coisa mais fácil, e menos precisa, é dizer que nesse mundo do Islã são todos terroristas e fundamentalistas, e ver também o quanto são diferentes de nós… Mas na verdade o ponto mais fraco da tese de choque de civilizações é a separação rígida que delas faz, apesar da evidência subjugadora de que o mundo de hoje é, de fato, um mundo de mesclas, migrações, cruzamentos”.

Michel Onfray. No segundo tomo de sua trilogia Breve Enciclopédia do Mundo: Cosmos, Decadência, Sabedoria, Michel Onfray, autor de uns 80 livros [michelonfray.com], busca nos fazer entender o ciclo de vida e morte do cristianismo judaico. Já no prefácio desperta a história: “Segundo o princípio da grande tradição teocrática, Agostinho vê no curso da História a mão de Deus: a se pretender o fim do Império, há razões, e são boas razões. Que Roma pereça, se Roma deve perecer, tal como Cartago púnica pereceu a ferro depois ao sal da férula romana. O que Santo Agostinho ignora é que o desmoronamento da civilização romana ao qual ele assiste às margens de Hipona possibilita o advento da civilização judaico-cristã, da qual é um dos maiores pensadores. Antes de Agostinho, Hipona foi fenícia, púnica, numídia, romana; sob seu mandato, tornou-se cristã, depois vândala, depois bizantina antes de tornar-se muçulmana em 705 – e é ainda. A morte da Hipona romana permite a Hipona cristã. Agostinho vive na articulação desses dois mundos. Nós vivemos, eu vivo, você vive na articulação de dois mundos, o fim do cristianismo judaico e o advento do que é ainda vaporoso. A morte do que se foi é certa; a epifania do que está por vir continua incerta, mesmo se o bosquejo enseja a ideia da obra por vir…  É uma história plena de ruínas – pagãs, romanas, revolucionárias, ruínas de guerra, de regimes totalitários (Hitler talvez o maior destruidor, um Reich de mil anos). E de construções sobre as ruínas; ruínas de Estalingrado cidade-mártir; destroços dos gulags, mais ruínas europeias, bolcheviques, tecnológicas como Chernobyl, que prefiguram “as ruínas últimas, da civilização do fim das civilizações”.

Edgar Morin. Com obra de uns cem livros, judeu sefardita, Edgar Morin (O mundo moderno e a questão judaica, Éditions du Seuil, 2006) nos apresenta uma realidade de duas faces. Atos terroristas golpeiam civis judeus, guerras defensivas permitiram expandir seu território e implantar colônias, por necessidades estratégicas. Mas o mundo árabe-muçulmano nem é responsável pelo antissemitismo europeu nem pelo genocídio hitlerista. Os palestinos encaram sua situação como consequência da implantação estrangeira forçada em terra árabe. “A colonização sionista operou-se graças ao dinheiro judeu coletado no mundo e à ocupação de fato de numerosos territórios”. Uma colonização vexatória, repressora, que levou a uma legitima resistência palestina desde 1956, e que se organizou em 1964 com a Organização de Libertação da Palestina. ”A luta pelo reconhecimento é como uma resposta ao terrorismo de Estado de Israel.”

Essa visão dupla percebe uma “dialética infernal e um círculo vicioso, que criou um subjugador e um subjugado. Por trás dessa dialética, está a complementaridade antagônica do antissemitismo e do sionismo”. Netanyahu é personagem no livro quando de mandatos anteriores, por seu projeto da Grande Israel: colonizar a Cisjordânia e israelizar toda a Palestina.

Operações provocatórias, desde então, deslancham revolta popular, atentados; acirram mas enfraquecem a resistência palestina; levam a operações finais de limpeza étnica – a que assistimos agora. Morin é cético quanto às consequências: a curto prazo, relações de força desmesuradamente em favor de Israel; a médio ou longo prazo, possível mudança nessas relações, porque a proteção americana não é eterna e países árabes/muçulmanos também dispõem de armas nucleares. Enfim, uma estratégia autodestrutiva, de barbárie cega. Um círculo de ódio, medo, insegurança, desespero, vingança. Poderá deter-se?  “Israel é, hoje, onde desemboca a tragédia provocada pelo nazismo e onde começa uma nova tragédia de dimensões planetárias, em terras islâmicas”.