Proporcionar aos estudiosos da espiritualidade e a quantos, porventura, desejem aprofundar-se, a partir de uma perspectiva transcendente, no valor da tecnologia – grupo de ferramentas de inconfundível relevo para a melhoria das condições de vida neste planeta, uma vez conduzido com ética, responsabilidade e valor – é a finalidade última que nos inspirou nesta reflexão.
No conjunto harmonioso dos seres vivos, o ser humano destaca-se de maneira inconfundível e extraordinária. Possuindo deveres para consigo mesmo, para com seus semelhantes e para com a natureza, sua existência ultrapassa o campo biológico e sua essência é espiritual. Portanto, tende fortemente a exteriorizar, ao longo de sua trajetória, aspirações nobres e sentimentos de fraternidade e sociabilidade.
Em considerável medida a cultura e a tecnologia fazem parte da vida e certamente, constituem instrumentos valiosos e legítimos para a realização dos seres humanos, na medida em que ambas proporcionam condições favoráveis à concretização de seus ideais.
O desenvolvimento tecnológico, é bem verdade, não é um fenômeno recente na História, mas remete remotamente à mais rudimentar confecção de ferramentas de pedra e utensílios rústicos nas antiquíssimas sociedades tribais, o que viabilizou o desenvolvimento da caça e a construção de moradias mais seguras.
A tecnologia atualmente compõe-se de sofisticados elementos e interpenetra inúmeros setores – as artes, a medicina, a indústria, o transporte, a agricultura, entre outros –, influenciando-os radicalmente. Quando, porém, conduzida com finalidades nobres, visando o bem comum, não altera nem deforma a unidade interna, a expressão e o objetivo desses setores.
De fato, a tecnologia sustentada por ideais elevados evita fingimentos, de modo que a vaidade e outros interesses mesquinhos fomentem seu desenvolvimento inadequado e desordenado. A espiritualidade se entrelaça intimamente com a tecnologia quando esta eleva e dignifica o ser humano, direcionando-o para o desenvolvimento de suas faculdades.
Vivemos em um mundo globalizado, e isso nos faz refletir preocupadamente sobre a profundidade e a extensão decorrentes dessa realidade. Mais do que em qualquer outra época, as transformações ocorrem em uma velocidade inédita, por intermédio de uma estrutura tecnológica nem sempre articulada com a ética ou com a noção de bem comum. Esta circunstância exige plena atenção, não sendo razoável menosprezá-la.
A tecnologia, recurso da ciência que permite a ascendência do ser humano sobre a natureza, não se restringe atualmente ao universo das máquinas e equipamentos: ela tornou-se íntima da experiência humana. As tecnologias emergentes, como a robótica, a realidade virtual, a inteligência artificial, a impressão 3D e a biologia sintética dão mostras de uma realidade inexorável de avanço, cujo limite desconhecemos. Dessa forma, ressaltamos a importância de compreendermos e nos conscientizarmos da verdadeira dimensão da tecnologia, com o propósito de não incidirmos no terreno da inversão de valores encantados pelas maravilhas de seu uso. A tecnologia consiste em instrumentos, em ferramentas; possui caráter neutro; é um meio, e não um fim; está à serviço do ser humano, e não o contrário.
Desenvolvida pelo ser humano, deverá ser por ele bem conduzida a fim de que alcance uma finalidade superior, isto é, que se direcione ao bem comum. Sem dúvida, a tecnologia pode prestar-se a esse intuito, principalmente quando prevê fenômenos naturais e evita tragédias, quando oferece meios eficientíssimos contra a irrupção de epidemias e surtos, quando prolonga a expectativa de vida do ser humano, quando permite o rápido acesso ao conhecimento e à cultura, quando possibilita a aproximação de pessoas que se encontram separadas por fronteiras físicas etc. Sustentamos, por essas razões, haver real possibilidade de harmonia e compatibilidade entre tecnologia e transcendência.
No conjunto das coisas dignas de serem almejadas pelo ser humano, destaca-se a sabedoria. Ela permite que o ser humano conheça a si mesmo, suas faculdades e atributos e não perca tempo buscando fora de si aquilo que possui internamente de forma acentuada. Essa é uma verdade indiscutível que ultrapassou séculos, ensejando profundas reflexões em um sem-número de pessoas. E como isso se deu? Por intermédio de uma forma de tecnologia que é a mesma que utilizamos ao elaborar esta reflexão: a escrita. Lembremos: o “conhece-te a ti mesmo” estava inscrito no pronau do Templo de Apolo e foi transmitido de geração em geração por meio da literatura. Aliás, sem o recurso à escrita, a ordenação, a organização e a transmissão do conhecimento seriam tarefas dificílimas.
Tamanha é a importância da tecnologia no contexto da contemporaneidade, que não há o mínimo exagero em afirmar que o crescimento da população mundial, que se aproxima de 8 bilhões, só é sustentável com uma tecnologia eficiente na produção de alimentos.
Se, de certo ponto de vista, assiste-se a uma descoberta de novas possibilidades de interações humanas e a um aprofundamento de alguns valores espirituais por intermédio das mídias sociais e outras inovações tecnológicas, de outro ponto de vista, vê-se o desmoronamento da essência desses valores quando, não raro, o universo eletrônico investe contra o transcendente, provocando alienação e desvalorização de formas insubstituíveis de relações humanas, criando, por via de consequência, uma realidade caótica e vazia de sentido moral.
A tecnologia, independentemente da área de conhecimento em que se estabeleça, quando interpenetrada pelos valores da espiritualidade defendidos pelo Racionalismo Cristão, não busca produzir rupturas bruscas e irresponsáveis, mas estabelecer ligações produtivas e promissoras.
Dessa forma, a ação do espiritualista, onde quer que atue e independentemente dos meios e instrumentos a que tem acesso, fundamenta-se nos sentimentos de solidariedade e respeito ao próximo. Ora, sabemos que partindo do egoísmo nenhum avanço é possível; a partir do altruísmo, por outro lado, o progresso é certo e seguro – este princípio se aplica, sem dúvida, aos processos tecnológicos. É a concepção da tecnologia como um meio e não como um fim que permite superar visões estritamente materialistas e reducionistas da realidade circundante, pois assim se compreende que ela não possui em si uma idoneidade própria.
É o ser humano que manipula ou desenvolve a tecnologia que poderá utilizá-la em benefício próprio e coletivo, acelerando seu processo de aprimoramento, ou transformá-la em veículo de destruição, indignidade e atraso.
A técnica está à disposição do ser humano como instrumento válido para desenvolver, com método e reflexão racional, uma vida plena de possibilidades, articuladas segundo critérios nobres e humanísticos e integradas no contexto das legítimas exigências dos povos.
A tecnologia, analisada à luz da espiritualidade, é improdutiva se não alcança seu objetivo precípuo: beneficiar direta ou indiretamente a coletividade, o gênero humano. Para que ela se torne uma ferramenta valiosíssima em nosso processo de amadurecimento e desenvolvimento espiritual neste planeta, impõem-se a ética, a honestidade, o caráter, o discernimento, a diplomacia, a disciplina, o estudo constante, a renúncia, a abnegação e o método, pilares de uma vivência espiritualista feliz e produtiva, sadia e vigorosa, como nos ensina o Racionalismo Cristão.
Muito Obrigado!