Inesgotáveis, meticulosos, aprofundam-se os estudos sobre transtornos de saúde mental. Sequelas sérias, impelidas pela covid, exigem traçar diferentes modos de viver que aguentem o fardo, indefinível e esquivo. Parceiras, medicina e psiquiatria atualizam-se, apregoam e preparam respostas para mais sofrimento em caminho, mortalidade prematura, desarranjo social, recuperação tardia. Preocupa agora ir além do foco usual, para reimaginar os rumos da assistência: prevenir o lado físico e remoldar o mental, inclusive os sistemas que os movem.
Somos, hoje, espectadores e gladiadores em que as mídias sociais transmudaram-se em Coliseu do século XXI: armas digitais, sem espetáculo brutal e sangrento, mas propagando raiva, angústia, dor, infortúnio, ansiedade, pesar, stress, ideação suicida – esta a imagem do atual, feita pelo escritor turco Elif Shafax. “2020 será lembrado para sempre como um ano de perdas impelidas pela pandemia convid”, lamenta o Fundo Monetário Internacional.
Só nas Américas, e só mencionando a saúde mental, o dramático das estatísticas acusa: um em cada quatro indivíduos sofre de algum tipo de transtorno mental, milhões morrem por abuso de álcool e drogas – e suicídio. Mulheres e jovens encabeçam o rótulo dos mais vulneráveis a males mentais. Até fins de setembro 2021, a região contribuía com 39% dos casos globais da pandemia e 46% das mortes. No Brasil, pesquisa nacional mostra 61% em ‘depressão’ e 44% em ‘ansiedade’. Maus presságios a longo prazo.
Filósofos – seres inventados, eu diria, para assumirem-se como mestres do ser humano, em seu aprendizado de reflexão – sofismam sobre raiva, ansiedade, angústia, sofrimento, confusão. Distúrbios constituem sinal de alerta, sinal de mudança interna ou externa, com tendência crônica. Integram o existencial deste início de século, que antecede outros. O filósofo alemão Martin Heidegger fala do indivíduo como um ser contingente. Assim, a ansiedade (quase sempre seguida de depressão) seria uma forma de expressar o medo. Medo transposto para o agora, nervos à flor da pele, insegurança alimentar, financeira, rotina escolar alterada pelos lockdowns, (des)emprego. Mais do mesmo em proporções de doença. Já o norte-americano John Rawles, tido como filósofo político dos mais importantes no século XX, em sua obra máxima Uma Teoria da Justiça,1971, defende: que as desigualdades socioeconômicas, na raiz de tantos distúrbios mentais, sejam manejadas em benefício dos menos favorecidos.
Obra da cientista ambientalista Donella Meadows, Pensando em Sistemas (edição 2008, Sustainability Institute) vem de inspirar a Comissão The Lancet sobre o valor da morte. “A história de como se morre no século XXI é uma história de paradoxo”. Em trabalho divulgado em 31 de janeiro 2022, a Comissão tenta lançar uma abordagem mais realista para desarticular o que considera desajuste e contradições sobre morte e como se morre. Contesta os sistemas. Supertratamento, às vezes excessivo e inócuo para alguns no limiar da morte; total descaso para outros, sequer alívio da dor e sofrimento. Afastados famílias, amigos e próximos – o ser sozinho em sua aflição.
A filosofia ocidental criou um mundo de sistemas complexos, conforme exemplifica Meadows, mas quase nunca funcionais ou bem sucedidos. Já no anterior Limites ao Crescimento alertava para os danos aos ecossistemas e sistemas sociais que suportam a vida na Terra. E ponderava: não ponha tantos ovos numa cesta só. Os sistemas têm lentes como guias. São uma soma de alavancas, que exigem interconexão perfeita para chegar a seu propósito. É saber onde inserir e como fazê-las funcionar.
Informar é preciso. A dizer como, onde, quando, o que e por que, no sistema, são necessárias tantas quantas alavancas a deslanchar. Mesmo que temporariamente. A posição de conquista e onisciência prejudica. “Não podemos controlar sistemas, mas dançar com eles… Não às teorias, sim aos fatos” – aconselha Meadows.
Sistemas novos ou em atualização seriam o socorro? Como lidar com o desequilíbrio da longevidade – o viver mais e melhor – e o morrer sozinho, com ou sem uma parafernália de últimos dias? Como lidar com os limites da assistência aos que estão morrendo (possivelmente com medo da morte) e a comunicação com família, amigos? “Tudo, e especialmente a morte, deve ser pensado no contexto da crise climática”, alerta a Comissão, ao fazer um balanço do cotidiano real. No negativo: os sistemas de saúde/morte respondem por parcelas relevantes das emissões de carbono de cada país – e estão subindo. Há mais…
Com a crise climática no olho do furacão, sobreviver exige: quase tudo terá de mudar. Inclusive as regras de viver e morrer.