O que é ou se torna em genialidade? Espírito inspirado, altíssimo, ou o mais alto grau de capacidade mental criadora, em qualquer sentido, rezam os dicionários. Essa é a imagem gravada, pintada, esculpida, esboçada, desenhada de Leonardo da Vinci, em seus 500 anos de universalidade: excelência, criatividade, talento, fantasia, imaginação, faculdade inventiva. Copioso, disperso, deixou tantas obras quantas inacabadas. Um sábio, interessado em todos os ramos da arte e ciência, inscrito entre os grandes homens desejosos de transmitir, em suas obras, uma espécie de unidade mística, fruto da fusão de matéria e espírito. “Pintar é uma coisa mental”, dizia.
Berço abençoado de uma era de efervescência renascentista, de acento maior na Itália. Transição de uma fase histórica a outra, o ocaso da Antiguidade. E, logo, a renovação. Estudos introduzidos pelos primeiros humanistas despertaram o pensamento livre, encorajaram a curiosidade (marco de Da Vinci) e prepararam as melhores mentes da Europa para arrojar, libertas a imaginação e a criatividade. Petrarca, com um novo método de ensino, iria revelar o que denotamos humanitas – ou cultura.
Assim, o meio século 1450-1500 pode ser chamado de apogeu da Renascença. Nos clássicos, o alimento para o espírito. Da Vinci fez-se autodidata em latim, aprendendo na fonte. Multidões acorriam às salas de leitura. Homens de talento, escoimados pela erudição, expressavam pensamentos e sentimentos próprios. Como Dante, Petrarca, Boccaccio (literatura), Da Vinci, Rafael, Ticiano (pintura), Donatello, Miguel Àngelo (escultura), Bramante, Lombardi (arquitetura). Em ciência e filosofia, também tudo mudava. De novo Da Vinci, mas também Toscanello, Alberti. Inventos científicos, estudos de anatomia — interrogar a natureza admirável, na busca do puro, do perfeito. Uma revolução visual, a estética suplantando a religiosidade. Renovar. Na área da crítica, o mesmo espírito honra Maquiavel, que se tornaria amigo de Da Vinci.
O senso subjetivo da observação objetiva – do qual Da Vinci podia gabar-se – amoldou-se como luva na caricatura. De Da Vinci e Albert Dürer, mais de 1.500. Perfis, tirados de retratos, moedas, medalhas, geraram uma variedade imensa de narizes, queixos e supercílios extraordinários. As cabeças de governantes, nessas peças, quase sempre desgastadas pelo tempo, favoreciam o exagero e ressaltavam características. Gratificam Da Vinci, um fascinado pela feiura suprema como complemento da beleza suprema. Nas garatujas, seu traço indelével, ele nos presenteia com uma visão única de perfis justapostos da bela juventude com a idade provecta.
Florença, de inato temperamento artístico, ilumina-se no Renascimento. No século XIV, cidade de 100 mil habitantes, já era um centro de letras e artes, pleno de construções magníficas, pinturas, bibliotecas. Sofreu guerras e flagelos nos anos 1300, suportou 60 anos de reinado dos Médicis e influência dos Bórgia. No convívio de Da Vinci, seu mestre maior, Andrea del Verrochio; os rivais Michelangelo e Rafael; déspotas como Ludovico Sforza (Il Moro, de Milão) e os Borgia; eclesiásticos da cúpula católica, como o papa Leão X; os reis de França, conquistadores de Milão. Frequentou a realeza, aproveitou-se da política, vivenciou a vida em Florença, Milão e Roma. Incansável, também infeliz por vezes – conforme o descreve o biógrafo Giorgio Vesari em Vidas dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos.
Espelho de interesses sem fim, a extensa pesquisa sobre autenticidade de obras de Da Vinci encontra eco nos Cadernos de Desenhos e Anotações. Seriam, em maioria, dos últimos 30 anos de vida. Compõem estudos do homem e da mulher, anatomicamente dissecados; animais, sobretudo cavalos e cães; árvores e flores; frutos e água corrente, água em movimento. Há também monstros fantásticos, caricaturas, debuxos para representações teatrais de fundo histórico, diagramas arquitetônicos e mecânicos, projetos de engenharia militar. Mapas. Observações detalhadas em geologia, geografia, astronomia, botânica e arquitetura ampliam a gama. E tanto mais o que se perdeu.
O que se salvou chegou à posteridade, no século XIX, graças ao zelo do jovem amigo e discípulo, Francesco Melzi, que morreu em 1570. A maioria dos documentos foi ter ao escultor Pompeo Leoni, que buscou organizá-los, já em fins do século XVI. Daí surgiram dois volumes: Codice Atlantico, legado em 1637 à Biblioteca Ambrosiana de Milão. O segundo, depois de várias vicissitudes, passou à coleção dos reis da Inglaterra. Supõem os biógrafos que outro tanto de papeis, em posse de Da Vinci até sua morte, acabou dividido em várias coleções: no Museu Britânico, na Galeria Uffizi, Florença, e na Academia de Veneza.
Na história davinciana da pintura há coisas curiosas. Francesco Albertini, em seu Memoriale (1510), menciona um anjo entre as pinturas da igreja de S. Salvi, em Florença, peça de tal excelência, que tanto superou e mortificou o mestre Verrochio, que este nunca mais pintou. Montanhas fantásticas, cenário ao fundo de algumas telas, ajudam a patentear a obra de Da Vinci. E, observam os biógrafos, antecipam, já, seu estilo na Mona Lisa. A paisagem não teria meramente efeito decorativo, mas o de visualizar vida interior. Um modelo idealizado: uma mulher distante, traje simples, em postura que a faz régia, enigmática. Abolir a exterioridade, o material, o físico.
Aos 50 anos, e Leonardo da Vinci viveria mais 17, já lhe haviam concedido o merecimento que a poucos cabem. E sobrevive há 500 anos, inquestionavelmente unido à Mona Lisa primórdio no desenvolvimento da pintura-retrato convergindo para o espiritual.