Capitólio. Marco familiar em Washington, talvez sua construção mais importante, do ponto de vista cultural e histórico. Lar do Congresso desde 1800. Thomas Jefferson foi o primeiro presidente a ali prestar juramento, um ano depois. Mas é Abraham Lincoln, assassinado em abril de 1865, quem jaz em câmara ardente na merecida cúpula por sua insistência concluída, apesar da guerra civil. Tornou-se o símbolo maior da unidade nacional.
Domina a colina, daí Capitol Hill. Pierre Charles L’Enfant, arquiteto, o descrevia como “pedestal esperando acontecer”. Seu plano de construção não saiu da mente para o papel e, logo, um físico versátil, com dons outros – William Thornton – agradaria Thomas Jefferson com seu esboço: “… simples, nobre, belo, excelentemente distribuído e de tamanho moderado”.
Valeu a concepção de Thornton para a construção e posteriores modernizações. Agora, 6 de janeiro 2021, o Capitólio invadido pela insurreição dos trumpistas consegue resguardar-se de danos maiores, mas projeta imagens chocantes de uma profanação (evidente nas fotos troféus e selfies) e vandalismo ameaçadores para a República que o prédio simboliza. Um assalto quando em jogo a certificação dos resultados de eleições contestadas pela resistência aos fundamentos da cultura cívica norte-americana.
Mundo afora, é comum o conflito sobre eleições contestadas. Os autores Pippa Norris e Ronald Inglehart (Council on Foreign Relations) lembram que elas acontecem sobretudo no que os cientistas políticos chamam de autocracias eleitorais. Ou seja, sistemas de governo que lidam com a democracia, negligenciando suas normas e práticas. Acontecem em países instáveis, com longo histórico de guerra civil (Afeganistão), em sociedades etnicamente divididas (Nigéria), e as propensas a desencadear violência de massa.
Em alguns casos, reformas resolvem. Nos piores, desembocam em quedas de governo, golpes militares, conflitos em que impera a violência. ”Mas não se supõe que ocorram no Ocidente… Eleições aqui disputadas resolvem-se por meio de apelos legais a comissões eleitorais, tribunais e cortes. Lembrem Bush e Gore, 2000”, dizem. Livros e mais livros tentam explicar o inédito da realidade americana, sendo os mais recentes: Pode acontecer aqui?, Como as democracias morrem, Crepúsculo da democracia.
Coisas tais como a invasão ao Capitólio são imagináveis, dizem Norris e Inglehart, na África ou Ásia, nas economias de renda média. Como a Hungria de Viktor Orban, a Índia de Narendra Modi, as Filipinas de Rodrigo Duarte, a Venezuela de Nicolás Maduro. E alguns mais. Na mentalidade dos líderes populistas – nós contra eles –, tudo se justificaria. Mas num país como os Estados Unidos? Um modelo exemplar (nem tanto) de democracia?
Dois estudos independentes, atribuídos ao Projeto V-Partido e à Pesquisa Global Partidária, mostram o quão longe o GOP foi. Ultrapassou os democratas (bonzinhos?). É agora tido como bem próximo dos populistas autoritários: Vox, na Espanha; Partido para a Liberdade, na Holanda; Alterative, na Alemanha. Calcanhar de Aquiles comum aos regimes repressivos em crescendo, o fator corrupção abre a lista do que leva a multidão às ruas. (O governo Trump é considerado dos mais corruptos da história americana. E “incompetente”, segundo observadores estrangeiros. Sua imagem de desprestígio cresce.
Relatório sobre Risco Global, 2020, do Fórum Econômico Mundial, só do ponto de vista geopolítico enquadra como as ameaças mais prováveis nestes tempos: atentados terroristas, conflitos domésticos, colapso de governos e fracasso de governanças nacionais e global.
Entre 2015 e 2019, a Global Terrorism Database inclui 310 atentados com 316 mortes, nos Estados Unidos. Inclui intervenção do FBI para impedir sequestro do governador de Michigan. Não é apanágio do país. Há estatísticas de 320% de aumento no terrorismo de direita no mundo, entre 2015 e 2020. O moderno populismo parece abrir a quinta onda extremista, de direita, precedida pela Anarquista (início dos anos 1880), Anticolonial (1920), da Nova Esquerda (anos 1960) e Religiosa (anos 1990, com a al-Qaida). O impacto negativo da pandemia tenderia a acelerar sua radicalização e permanência por muitos anos mais.
Qual a lógica política por trás dos movimentos ditos populistas? O filósofo Chantal Mouffe (Diplo, janeiro 2020) menciona conjunturas específicas do “momento”, como a construção da oposição nós/eles, a estrutura sócio-econômica, o contexto histórico. O populismo de direita, tipo xenófobo, propõe-se restringir a democracia aos nacionais; o de esquerda estendê-lo a outros domínios – e aprofundá-lo. Professor da Brookings Institution, William A. Galston (Jornal da Democracia) vê na economia, cultura e governança três fontes de insatisfação e, por corolário, de insurgências populistas. Na dicotomia populista, nós (o povo, força virtuosa) contestamos eles (a elite, força maligna). Os “inimigos do povo” seriam conspiradores corruptos, com ligações ocultas com forças externas.
Sem ser o primeiro presidente a desafiar instituições internas, Trump, porém, parece ter exagerado na retórica e ações – bombásticas, teatrais. A exemplo do Coliseu, onde tudo começou, com o Império Romano de tantos ensinamentos. Panem et circenses; o pão e circo assumem contemporaneidade. De Reinhard Bütikofer, membro alemão do Parlamento Europeu, uma máxima breve e elucidativa: “A cidade brilhando, da colina do Capitólio, já não brilha tanto quanto antes”. E o Coliseu são só ruínas, arquitetura e história preservadas, para bem geral.