Clecy Ribeiro, jornalista, professora.
Tempo perdido não se recupera. Joe Biden parece contradizer o velho ditado, com resposta rápida à sua eleição nos Estados Unidos, num mandato de liames incontáveis para acomodar as políticas interna e externa. Há sinais que contradizem algumas previsões de antipatia intensa, táticas obstrucionistas republicanas, Judiciário hostil, populismo trompista, enfim obstáculos perenes ao longo do curso, como entendem analistas de renome (World Politics Review). Recuperar o tempo perdido implica restabelecer a confiança, o crédito, a cooperação.
Assim, Joe Biden assume, sem esperar janeiro. Político clássico, no centro do espectro democrata e longa experiência, há quem aposte numa atualização, desprezando o (ultra)passado. Como vice, participou de momentos importantes no governo Obama, notadamente nas negociações com os republicanos sobre a crise orçamentária de 2013. Arroja-se já com a máquina azeitada, quanto mais não fosse para atuar na oposição. A “América Primeiro” continua presente, porém com nuanças. Atesta o item primeiro de uma lista concisa (Pew Research Center) de premências: emprego, proteção ao trabalhador americano. A seguir, segurança econômica e combate ao terrorismo. Em ambos, os democratas empatam, por assim dizer, com as preocupações republicanas. E ainda num terceiro item – disseminação de armas de destruição em massa.
Temas em análise. A partir daí, abrem-se as divergências de abordagem, pontos de choque mesmo. A começar pelas relações (ora conflitantes) com os países aliados, mudança climática de programa verde (envolve Brasil), imigração (envolve México e América Central), instituições internacionais (sobretudo a ONU), defesa dos direitos humanos (em casa e no exterior). Domina, como estratégia, o soft power, a prática diplomática. Joe Biden esboça um quadro de reviravolta da postura republicana nacionalista. Mesmo porque há assuntos prioritários do Partido Republicano que cabem na plataforma democrata: comércio e o déficit comercial, liderança militar, influência do Irã no Oriente Médio e da China/Coreia do Norte na Ásia, imigração ilegal. As divergências chegam às raias com o “online” de conteúdo ofensivo. Deve-se levar a sério? Ou pouco importa? Para os democratas, um conteúdo seguro, ou seja, confiável, importa mais que a livre expressão (60% a 45%). Os republicanos apostam mesmo na liberdade de expressão, como quer que se manifeste: 54% a 38%. Assunto em pauta desde 2017.
Dificuldades. Segundo o analista geopolítico Robert Kaplan, México e América Central são a região que mantém com os Estados Unidos uma “relação inextricável”: grande volume de exportações, grande deslocamento latino para o Norte. O resto do continente encontra-se num período de guerra fria com os Estados Unidos, a volta ao espírito do “quintal”, desde a reeleição, em março de 2020, do secretário-geral da OEA, Guillermo Long, ex-ministro do Exterior do Equador. Uma espécie de reconstrução da hegemonia americana, a partir de um organismo que projeta a geopolítica de Washington na América Latina e Caribe. Em crise de democracia, a região arca com descontentamento popular, pressões contra o desmatamento da Amazônia, crescente militarização, economias falidas.
Mas o momento ainda pertence à pandemia. Reduzir o contágio de doenças infecciosas está entre os primeiros na lista democrata de urgências. Com a vacina, um trunfo – já esperado. Reconcilia Ciência e Saúde, alenta corações e mentes. Quem sabe, favorece a cooperação; saúde é questão de todos. Segundo o plano oficial, a vacina deverá ser distribuída gratuitamente, mas o governo federal dará assistência também a famílias, pequenos negócios, profissionais e servidores de saúde, enfim os mais vulneráveis aos impactos econômico e sanitários nas comunidades americanas. A Ciência será ouvida e suas decisões acatadas, o público informado e com acesso a testes gratuitos de toda espécie. Um grupo de saúde pública (100 mil pessoas mobilizadas em todo o país) cuidará, ainda, de proteger as populações de risco, procurando evitar o contágio. Máscaras e demais equipamentos de proteção individual terão produção aumentada. Diz Biden: “Não se trata de política, mas de salvar vidas”.
Lidar com a divisão partidária é uma constante na história política americana. A evocar a cisão definitiva do Partido Democrata na Convenção de 1860, por causa da escravidão, ensejando o sistema bipartidário até hoje vigente. Nesse ano, Abraham Lincoln tornou-se presidente, disputando pelo Partido Republicano, antiescravagista, criado em 1854 com meia parcela dos democratas dissidentes. Esta terá sido a primeira de três “eleições críticas” nos Estados Unidos, segundo historiadores, que assim pretenderam denominar contestações à lealdade partidária. Na segunda, 1896, uma desastrosa divisão democrata (o programa populista de seu candidato) pende a balança para os republicanos. A terceira, 1932, na onda do crash no mercado de capitais em 1929 e da Grande Depressão, levou Roosevelt e seu New Deal ao governo. Merecerá inclusão, nessa lista crítica, uma quarta eleição? A de 2020? Afinal, nela transborda a polarização, a cisão partidária do país.
Defesa dos democratas. Mudanças no Partido Democrata são também uma constante, em 200 anos de história. No século XIX, apoiava ou tolerava a escravidão. Depois da Guerra Civil opôs-se aos direitos civis para reter apoio dos sulistas. Em meados do século XX, dramático realinhamento ideológico e torna-se partido pró trabalho organizado, direitos civis das minorias e reformas progressistas. Desde o New Deal, defende intervenções do governo na economia. O moderno Partido Democrata geralmente bate-se por um governo federal forte, com poderes para regular negócios e indústria de interesse público; serviços sociais financiados pelo governo; benefícios para os pobres, desempregados, idosos e outros grupos; proteção aos direitos civis.
Em política externa, multilateralismo e ação política por meio de instituições internacionais. Mas é altamente descentralizado, tal como o Partido Republicano. Este foi alijado do governo durante duas décadas, até o general Eisenhower, em 1952. Hoje, com ideologia mais unificada que o Partido Democrata, mantém plataforma conservadora. Defende menos regulamentação na economia e apoio a direitos dos estados contra o governo federal. Em política externa, tradicionalmente, advoga uma defesa nacional forte e agressiva quanto aos interesses de segurança nacional, mesmo ao custo da unilateralidade e contrária aos interesses globais. A eleição de 2016 aparece, em sua história, como um momento divisório no Partido.
A natureza não dá saltos. Menos ainda os Estados Unidos. Inimaginável passar do excepcionalismo de Donald Trump à social-democracia de Bernie Sanders. Com o moderado Joe Biden e Kamala Harris, agora vivenciamos um momento significativo do irrequieto Partido Democrata americano. O tempo e os personagens se encarregarão de definir o que irá distingui-lo.