Fagulhas continuam a soprar do outro lado do Atlântico, para onde as levaram os ventos do Black Lives Matter. Temerosos do pior (mortes e efeitos econômicos da pandemia), os intelectuais africanos comandam ordem de batalha no continente. Apelo ao governo em carta aberta, mobilização da sociedade civil e, sobretudo, da Arte e Cultura. Como os irmãos afro-americanos, servem-se das ideias. O Despertar da África traz marca: nomes como o nigeriano Wole Soyinka, Nobel de Literatura 1986; o filósofo senegalês Souleyman Bachir Diagne e o ganense Kwame Anthony Appiah; o sociólogo senegalês Alioune Sall, o economista togolês Kaki Nubukpo, o analista político e crítico de arte (Costa do Marfim) Franck Hermann Ekra. E mais Comel West, Makhily Gassama, Djibul Tamsir Niane. Uma mobilização com espaço para a arte grafite nas ruas, pensando a ‘África de depois’. Eco excepcional. Conquistam os cientistas — pensar a saúde e defendê-la por seus próprios meios; prover autossuficiência alimentar e racionalizar a farmacopeia. Dentre os céticos, o escritor Boucabar Boris Diop desencoraja: ideia arrojada, mas pouco realista.
A ‘África de depois’ dirige-se a um continente frágil e vulnerável em crise de transformação. Já chegou, dizem os africanos. “Eu me imagino criativo, solidário, resiliente, ou seja, africano em essência”. Bom mesmo que assim pensem, pois sua pluralidade está diante de uma torrente de inovações do mundo digital, a lidar com pontos nevrálgicos: e-saúde, e-segurança, e-comércio. Análise da ‘Strategic Intelligence’ chama atenção para a acelerada urbanização e empregos em crescimento, portanto pobreza menor, mas males ainda crônicos. Sobressaem a produtividade agrícola pobre, sujeita ao clima, bem como o desemprego de jovens. Fora os céus abertos ao terrorismo e conflitos civis.
A esperança moveu a Primavera de Praga em 1969 e a Primavera Árabe em 2011-2012. A ‘África de depois’ caminha com esperança. Na trajetória, encontra instituições internacionais (FMI e seus empréstimos “filantrópicos”, fonte de endividamento), chefes tradicionais (com habilidade e autoridade para criar respostas coletivas a problemas locais, culturais e sociais, sem viés político), governantes ineptos. A pandemia enraizou-se nas cidades, com efeito pânico; são epicentros potenciais de crise de água, alimentação e energia elétrica. Única em muitos lugares, a economia informal virou sinônimo de banditismo. No Sahel – nada além de pobreza -, o Estado Islâmico expande seu califado, com braço estendido às fronteiras. Cabo Verde, mais conhecido pela beleza de suas ilhas, ainda é foco de imigração ilegal e narcotráfico, ou seja, ameaça latente aos suprimentos do golfo da Guiné. Vez por outra, a Otan fantasma vai lá fazer manobras. Quanto ao Quênia, primeira potência da África Oriental, “vive” da cultura da dívida online via celular (estudantil, hipotecária, agrícola), com juros abusivos que chegam a 32% por semana.
Em vigor no papel desde julho 2019 (a pandemia adia a prática), a Zona Continental Africana de Livre Comércio propõe-se criar um ambiente de negócios para, até 2022, aumentar o comércio local em 52%. Em pauta, produtividade maior e serviços qualificados. Livro recente de Landry Signé (Brookings Institution e Fórum Econômico Mundial) prevê que, como um todo, a África terá o índice de crescimento maior e mais rápido do mundo, em apenas dois anos. País a país, porém, o histórico difere. São economias voláteis, de muita disparidade entre os países do Sudoeste e Sudeste, e os do Cinturão do Meio e do Norte. Contudo, tendem a se tornar mais competitivas. Signé aposta alto nos mercados de consumo e distribuição, agricultura, manufaturas, petróleo e gás, turismo. A urbanização acelerada permitiria reduzir os níveis de pobreza até 2035. Um convite a maior investimento. União Europeia, Estados Unidos, China, Arábia Saudita, Coreia do Norte, Índia, Brasil, Indonésia, Rússia, Turquia invadem a agricultura (compra e arrendamento de grandes áreas), comércio, mineração. Israel capricha na influência política e militar. Em números de 2019, a União Europeia lidera as trocas comerciais com US$ 275 bilhões. Depois, a China, com US$ 200 bilhões, a Índia com US$ 70 bilhões e, ainda incipiente, a Rússia, com US$ 20 bilhões e interesses em diamantes brutos e petróleo. Bastante diversificada, a paleta chinesa embrenha-se também pelas telecomunicações e informática. Quanto à França do colonialismo, recria suas relações: “Precisamos que os africanos falem, eles próprios, da África”, proclama o presidente Macron. Indagam os desesperançados se é de fato uma abertura ao pan-africanismo ou aos danos das multinacionais.
Outra referência otimista parte de Elsie S. Kanza, à frente da Agenda Regional África (Fórum Econômico Mundial), agora apostando na economia digital, sobretudo e-comércio. “Não há escassez de inovação na África”, constata. Com a experiência da crise do Ebola, em 2014, criaram-se duas plataformas para ação em saúde, economia e informação. Priorizam suprimentos médicos feitos na África e promovem colaboração entre as grandes redes operadoras de celulares na região e organizações internacionais. Nessa África digital, um segundo ímã para investimentos. Há 15 anos, vem difundindo o uso de celulares, embora ainda sem muita cobertura de rede. África do Sul, Nigéria e Egito tomam a frente, cada um hospedando mais de 30 polos tecnológicos. Distribuição de serviços (agricultura) e impressão a 3D no topo da lista. Segundo o autor italiano Iginio Gagliardone (professor na África do Sul), é a China que vem transformando o espaço informático africano. Empresta dinheiro, treina, troca programas onde há campo para expandir as tecnologias.
Colonialismo em novo turno, agora virtual? Quatro bigs tecnológicos aprumam-se: Alibaba, Facebook, Netflix e Amazon. O primeiro concede à África, desde já, o Prêmio Netempreendedor. Para o segundo, a África é importante por seus jovens, mulheres de negócios, indústrias criativas. Um ecossistema tecnológico de se ver, segundo o diretor regional Nunu Ntshinglia. Netflix e Amazon disputam o controle dos mercados de bens e serviços, mas também de dados, visando ao consumidor de uma classe média que ascende, bem como as Artes. Quanto às Letras, tão presentes quanto, continuam a desvelar o real e o fantástico africano. O real mundo contemporâneo, a história, o passado; o fantástico mundo dos mitos e crenças, da fantasia, do além-real, deuses e a criação. No âmago, a luta entre o tradicional e o moderno, o rural e o urbano, as gerações, os gêneros.
Nesse panorama, não faltaria a raiva reprimida. Detona de novo com o movimento Black Lives Matter. A Universidade da África do Sul é um ninho de efervescência, a lembrar os colonizadores magnatas da mineração, como Rhodes, origem da destruição de estátuas nos protestos. Agora são as terras raras, nome dado não a terras, mas aos cobiçados minerais de complexa extração, refino e reciclagem (compostos de 17 elementos químicos, alguns radioativos), que poucos têm, mas muitos usam. Uso múltiplo e desbragado, sobretudo nas indústrias de defesa e eletrônica. A China, maior exportadora, castiga com preço abusivo. Assim, outros países decidiram-se a competir, inclusive o Brasil, que encontrou três novos minerais (Amazonas, Minas Gerais e Bahia).
Sintetiza o autor Joan Tilouine: “O que ilustra o momento africano é um dos símbolos Akan mais poderosos dos povos da África Ocidental, o Sankofa: um pássaro mitológico que se nutre de seu passado e de si mesmo para projetar-se no futuro”.