A luta pela integração na América do Sul teve um pico na primeira década deste século XXI, com mobilizações de massa e apoio a governos populares. Virou de cabeça para baixo na década seguinte, e de novo emerge, em resistência ao acirramento insuportável dos “castigos” do Império hegemônico. Insuficientes as sanções econômicas, a intervenção – politica e financeira – adota um demonismo sofisticado, sutil, articulado, enganoso, repetitivo. Repetir faz acreditar. Uma nova roupagem para velhas ameaças, conforme expresso no dossiê Tricontinental: Institute for Social Research, dezembro 2021.
Sombras e ameaças. Não bastam impeachments, golpes, convulsão interna. A guerra híbrida aplica-se aos grandes negócios, sobretudo o agro, oscilando entre a velha e a nova direita alternativa. O antipopulismo torna-se uma marca registrada contra Lula da Silva (Brasil) e os Kirchner (Argentina), ressurgem as teorias da conspiração e do perigoso avanço da Esquerda (Cuba, Venezuela, Bolívia, Brasil). Figuras políticas – ou figurantes – crescem como salvadores da Pátria. Estratégias de comunicação, nas megaplataformas online, esmeram-se em provocar indignação contra as “ameaçadas” liberdade e propriedade privada.
Se a resistência provoca tanto demonismo, também o expõe em cheio. Os três pilares de referência do ensejado projeto de integração sul-americana – Brasil, Venezuela, Colômbia – retratam bem a imagem do presente. O sociólogo venezuelano Edgardo Lander evoca os valores constantes do projeto de seu país, a partir do chavismo: o popular e o nacional; a soberania, equidade, democracia participativa e rejeição ao mundo unipolar; prioridade para as relações com o Sul. A ideia, ou sonho bolivariano, associa-se, ainda, à noção de unidade cívico-militar, com a qual o Brasil se identifica. Afinal, o processo democrático não alija o compromisso militar.
Na Colômbia, conforme o também sociólogo Jaime Caycedo, há que ressaltar o impacto regional negativo da guerrilha, pelo combate que se internacionalizou, através da luta contra as drogas e o terrorismo. Internamente, afeta inclusive as tentativas de reforma agrária (premente, nesse Sul tão agitado). Externamente, converte Colômbia e Equador em espaço desestabilizador da Venezuela e Amazônia. O que concorre para a expansão militar dos Estados Unidos, com bases também no Peru e Bolívia. Óbvio que tudo irá refletir-se nas economias de todos. No Brasil, ainda vinga o discurso de ódio ao PT, depois do estrago da Lava-Jato, que nem a Vaza-Jato consegue recuperar. Corrupção é a palavra mágica contra “o outro mundo possível”, esgotando projetos aglutinadores de forças diversas e pluralistas.
Liderança inconteste. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães (Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes, Contraponto, abril 2006), marcam o debate sobre a integração da América do Sul: o desconhecimento de sua situação estratégica, e da história da política externa do Brasil. O país tem 15.600 km de fronteiras terrestres com dez países mais ou menos em situação de instabilidade. Na Amazônia, são 11.248 km, dos quais mais de 6 mil km com Bolívia e Peru e o restante incluindo a Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Não há fronteiras com Chile e Equador, não há fronteiras em disputa. E são 8 mil km de litoral em frente à África Ocidental. Só isso lhe garante uma situação geopolítica de relevância e, portanto, de protagonista internacional. Mas são muitas as disparidades sociais internas e outros fatores, que tornam o país vulnerável e aberto à dominação imperialista. Ao redor, reina a desestabilização, que muito afeta a Argentina, base necessária da política externa brasileira em um mundo plural. No Chile, sob Boric (36 anos), o governo se vê “encurralado” entre políticos velhos e novos, retardando o aprofundamento do programa democrático de esquerda.
Pode-se dizer que o início da hegemonia americana foi a Doutrina Monroe. Um avanço avassalador que destronou a influência francesa, inglesa e alemã – em especial na Argentina, Brasil, Uruguai e Chile, sendo os dois primeiros de importância crucial para os Estados Unidos.
Com a constatação, não menos crucial, de que vínculos estreitos entre eles (econômico, tecnológicos, militar, político) reduziria a dependência externa e criaria um centro de poder na América do Sul, com projeção mundial. Dividir para dominar, tal como na Europa. E, se o Brasil mais se aproximava dos Estados Unidos, mais a Argentina se afastava de ambos. Até o mandato Carlos Saul Menem, que procurou aproveitar a abertura do mercado brasileiro, via Mercosul, para associar-se ao sistema militar norte-americano. Uma política que, lembra Pinheiro Guimarães, “rendeu frutos à política americana no Continente”. Sobrou para o Brasil: além das tensões políticas e ressentimento, crise no Mercosul, subordinação crescente à Casa Branca e suas instituições financeiras e militares. Amazônia, a zona predileta. Mas há intromissão também nos programas de formação científica e econômica (desde a década de 1960), favorecendo as megaempresas multinacionais e sua escandalosa influência publicitária nos meios de comunicação.
Como objetivo principal, qualquer projeto de integração regional pretenderia assegurar a execução soberana de programas conjuntos de desenvolvimento sustentável. Nos Andes, um fator relevante em favor da cooperação: seu regime hidrográfico, que alimenta a bacia amazônica. Água é uma questão mundial. Há uma crescente escassez de água doce no mundo – para consumo humano e uso industrial e agrícola. Já ocorre em diversos países, e carregada de tensões no Oriente Médio. O Brasil detém 14% de todo o volume de água doce do mundo e a floresta tropical amazônica é parte essencial desse sistema hidrográfico. Desnecessário repetir os entraves, calcados na concentração de renda e riqueza e políticas específicas, inerentes a cada país. Mas prevalece uma constante de desemprego e subemprego, dependência de exportações, urbanização descontrolada, migração. É como que uma situação histórica de desigualdades e insegurança – comum a todos os países.
O mundo, e não unicamente a América do Sul, está virando numa direção distinta do neoliberalismo, para reconstruir laços entre os povos e melhorar suas condições de vida. Do “momento decisivo” da primeira década do século e esvaziamento nos anos seguintes, acena-se um novo alçar do polo sul-americano, em estreita aliança com a Argentina, de parceria costurada, e no âmbito do Mercosul – mirando a Europa. São dilemas os interesses nacionais e o posicionamento quanto aos Estados Unidos e China. Mas, como lembra Emir Sader, a hegemonia cria forças nas debilidades da força alternativa. É, então, unir ou sucumbir.