Qual é, afinal, o conteúdo e o sentido dos erros e dos sofrimentos? Muito se tem debatido sobre suas razões e sobretudo sobre suas origens. Porém, essas análises se dão geralmente por um viés fantasioso, alegórico e mítico, cujos propósito e utilidade não nos interessa discutir. Cumpre-nos somente o dever de fazer referência aos aspectos espirituais que a observação racional da realidade nos permite apreender.
Todas as pessoas cometem erros de maior ou de menor gravidade, alguns dos quais, irrefletidos. Evidentemente, essa problemática lança uma interrogação: sofremos as consequências daqueles erros que cometemos inconscientemente, ou seja, irrefletidamente?
Certamente, uma resposta a tal pergunta é injusta se for excessivamente genérica; porquanto, para ser justa, não se pode simplesmente afirmar que sim ou que não – o que seria, além de injusto, leviano.
Para compreender essa questão, é necessário fazer uma reflexão que se aplique ao aspecto transcendental do tema. As relações entre a experiência do erro e o que se considera inconsciência não devem ser concebidas reduzidamente segundo o paradigma de uma simples equação lógica, dedutiva ou elucidativa. O nexo entre o erro e o gênero humano consiste, antes de tudo, no fato de que aquele é um elemento intrínseco, constitutivo e necessário à evolução humana. Compreendida essa realidade, exclui-se a possibilidade do estudioso da espiritualidade incorrer em processos de baixa autoestima, desvalorização da personalidade e complexo de culpa.
Mesmo as pessoas que se esforçam honestamente em trilhar o caminho da virtude estão sujeitas a alterações de conduta, tendo em vista os desafios que se apresentam a todo instante na vida e o estado emocional predominante no planeta, pois este, apesar de sua heterogeneidade, é ainda dominado pelo preconceito, dificultando uma tomada de decisões acertada. O aprimoramento moral é impossível sem a ruptura com as amarras do negativismo.
A estas considerações de caráter mais formal se acrescenta uma outra, decisiva, de natureza objetiva. Seja qual for a gravidade do ato desastroso, é possível repará-lo quando se está disposto a fazê-lo, restabelecendo o entusiasmo e a alegria de viver. Todos têm o direito de rever seus posicionamentos e atos negativos e arrepender-se, sinceramente, buscando não reincidir no mesmo erro.
Diante dos grandes desafios da vida, ou mesmo nos atos cotidianos mais banais, o ser humano tem a necessidade de fazer escolhas. Nesse sentido, pode sua consciência emitir juízos que se fundamentem na ética e na razão – ou, contrariamente, suas decisões podem se afastar do que é reto e digno.
A pessoa deve sempre obedecer ao juízo certo gravado em sua consciência. Quando age intencionalmente contra as leis morais que regem as relações em todos os níveis, está na verdade agindo contra si mesma. Mas pode acontecer que a consciência moral esteja imersa na ignorância sob os aspectos reais da vida e faça juízos errôneos sobre atos a praticar ou já praticados.
Muitas vezes o desconhecimento da vida em seu aspecto mais amplo pode ser imputado à responsabilidade de cada um. É o que se verifica quando a pessoa não se dedica seriamente em espiritualizar-se com a procura da verdade e do bem. Nesse caso, a pessoa é culpável pelo mal que comete e deve trabalhar para corrigir-se.
O desconhecimento acerca da vida espiritual, os maus exemplos alheios, o servilismo às paixões, a pretensão de uma mal-entendida autonomia da consciência, a entrega aos vícios representam escolhas, não imposições, e seus efeitos são desagradáveis.
Algumas pessoas optam pela perpetuação do sofrimento em suas vidas, ao invés de rever posicionamentos e abrir-se para novas possibilidades de solução. Fechadas em suas ideias, não se permitem, por intermédio dos reveses e adversidades da vida, colher a devida lição e, por conseguinte, mudar sua concepção e estilo de vida.
Há quem argumente em favor da existência de castigos e punições, ou mesmo resgates e expiações advindas do mundo espiritual. Trata-se de concepções fatalistas e mecanicistas que historicamente se apoiam no misticismo associado à pseudorreligiosidade, que é pródiga em explicações simplistas. Todavia, tais hipóteses supõem visão demasiadamente estreita da realidade que nos envolve e interpenetra. Sem dúvida, os erros humanos produzem consequências; entretanto, essas consequências não têm caráter punitivo, e sim pedagógico. Na realidade, todos os atos produzem consequências, independentemente da intencionalidade e da circunstância. Entretanto, o que queremos deixar claro é que os efeitos dos atos e dos pensamentos sempre redundam positivamente para o espírito, embora ele, grande parte das vezes, não o reconheça em um primeiro momento.
Para entender as questões do sofrimento e do erro, a humanidade precisa penetrar em um contexto de sentido mais amplo, que assinala não existir uma contradição entre o bem e o sofrimento, que muitas vezes caminham juntos numa harmonia superior. Para o naturalista francês Teilhard de Chardin, o sofrimento é o subproduto necessário da evolução.
Em algum momento da vida, o sofrimento leva a pessoa a confrontar-se consigo mesma, a refletir sinceramente, a repassar sua vida – enfim, a interrogar-se sobre sua própria existência.
Todos vivem uma constante experiência de desenvolvimento, e no sofrimento podem também crescer e ampliar seus atributos. Quando a pessoa consegue compreender o semelhante como uma extensão de si mesma, amadurece espiritualmente, e algumas vezes isso só é possível quando, nos momentos de dor, desenvolve um olhar diferenciado, de empatia para com outros que participam da mesma experiência. Portanto, o dissabor pode ser um veículo de realização se os objetivos pessoais estão alinhados com a prática efetiva e desinteressada do bem.
Embora os equívocos sejam frequentes na realidade humana, eles não alteram absolutamente o fato fundamental de que o amor ao próximo é uma via eficaz de se chegar ao autoconhecimento e ao autêntico e sincero relacionamento consigo mesmo.
Há ainda uma outra perspectiva a ser abordada. Embora a essência temporal do mundo físico condicione algumas pessoas a pensar que a vida se resume à vivência neste planeta, o ser humano que sofre não encara este mundo como algo definitivo. Como consequência, há um despertar para a dimensão transcendental da vida, e é precisamente nos domínios da espiritualidade que o ser humano encontra um sentido para o sofrimento e para a integração de todas as dimensões e capacidades humanas.
O esclarecimento espiritual não elimina o sofrimento, uma vez que este não é um mal em si mesmo, mas altera radicalmente seu sentido, permitindo ao ser humano dar um novo significado a ele, reinterpretando-o. A partir dessa constatação, fica patenteada a inconsistência da ideia de castigo divino. O sofrimento humano assume outra dimensão quando o ser entende que por meio de sua vicissitude pode colher uma lição. Ademais, é tarefa dificílima aquilatar o conceito de felicidade humana, pois é certo que todos possuem problemas, desafios e contrariedades. Essas dificuldades são, na verdade, instrumentos de crescimento. Disso já sabiam os gregos da Antiguidade, quando afirmavam: páthos máthos (sofrimento é escola). Longe de mortificar, o sofrimento tem o efeito de fazer desabrochar a autêntica consistência dos atributos espirituais latentes, em todas as suas expressões e possibilidades.
No cenário cotidiano o conhecimento advindo do senso comum que tem, historicamente, auxiliado a humanidade na vida prática, não responde as dúvidas a respeito da eficácia de nossa consciência e da razão de ser dos sofrimentos, bem como, do sentido real da liberdade. Esses questionamentos são mote necessário para que o ser humano desperte seu interesse para os assuntos transcendentes, espirituais. Posto deste modo, é possível entender que a liberdade é proporcionada ao ser humano para que ele possa espontaneamente amar a si próprio e a seu semelhante, pois sem liberdade nenhum amor é possível. A dor moral, portanto, é consequência do uso inadequado do livre-arbítrio.
Sem dúvida, existe o sofrimento que não se origina da liberdade humana, mas tem raízes na natureza do planeta. Quando olhamos para a concretude das situações históricas e recordamos, por exemplo, tragédias como o terremoto de Lisboa em 1755 ou a catástrofe das ondas gigantes na Tailândia em 2004, vemos nitidamente que esses eventos não se deram em decorrência de pensamentos ou comportamentos contraproducentes ou impróprios. Desmoronamentos, avalanches, terremotos, inundações, tornados e demais cataclismos ensejam um sentimento de impotência e apontam para a contingência característica do planeta.
Não podemos falar de evolução, seja ela moral, intelectual, sociológica ou de qualquer ordem, isenta de dor e sacrifício. Ninguém deve incorrer no equívoco de imaginar um ser supremo delicado e afável que distribui benesses a seu bel-prazer, pois esse pensamento deveras fantasioso também é fonte de sofrimento. As reflexões mais eloquentes sobre um ser supremo seletivo e voluntarioso estão, ainda hoje, de modo geral mais ligadas à imaginação arquetípica. Todavia, essas ideias que começaram no pensamento mitológico soam, atualmente, até de forma constrangedora.
Muitos seres humanos que vivenciaram ou vivenciam de perto os horrores das guerras ou o padecimento de uma doença incurável não conseguem ouvir tranquilamente as teorias que apontam para um ser que beneficia uns e castiga outros. Levanta-se nelas a revolta. Isto é muito compreensível. Não conseguem harmonizar essas ideias com a vida real. Por isso, a pessoa prudente e observadora deve se posicionar diante das questões do mal e do sofrimento e perguntar-se com sinceridade qual o sentido que eles têm. Chegará à conclusão de que tudo, em última análise, concorre para o bem. Todos devem desenvolver a convicção de que o sofrimento não existiria se dele não se pudesse retirar um bem ainda maior.
Notamos na sociedade a existência de seres inseguros que não querem ser ajudados, optando por vivenciar um estado de permanente lamentação. Na verdade, essas pessoas criam seus próprios sofrimentos. Por um motivo insignificante, sentem-se ofendidas, magoadas, feridas e perseguidas. Esse estado de constante tensão e de desvalorização de si mesmas as leva invariavelmente ao desequilíbrio psíquico.
Claro está que não se deve apontar para essas pessoas informando-lhes que são construtoras de seus próprios sofrimentos, mas propor um questionamento em relação a sua própria vida, uma revisão de estilos e conceitos.
O filosofo alemão Friedrich Nietzsche afirmava que “todo aquele que tem um porquê para viver é capaz de enfrentar quase todos os comos”. Embora a visão nietzschiana não seja propriamente espiritualista, sabemos que quando a pessoa tem referências na vida, encara os obstáculos corajosa e resignadamente.
Na realidade, a falta de referencial provoca hoje um efeito patológico na sociedade, uma valorização cada vez mais crescente da conveniência, do discurso politicamente correto, da ética situacional, do que é mais agradável e mais lucrativo; assim, tudo é possível. Contudo, as consequências se fazem notar.
O atual cenário histórico em que transita a humanidade é marcado pela crise. Nessa perspectiva, onde se experimenta a falência de referenciais, toda a legitimação perde seu valor intrínseco e, por conseguinte, pode ser desconstruída.
Eis-nos, pois, diante dos desafios atuais. Que somente poderão ser superados pela vivência dos princípios de moderação, ponderação, amor, justiça e valor.
Não discutimos que a tese que coloca a ética em permanente dinamismo seja em parte verdadeira. Realmente, é inegável que o relativismo tem muitas aplicações, devido à dicotomia de nossos conhecimentos. Mas a reflexão que queremos suscitar – e que isso fique claro – é que quando o ser humano age deliberadamente em desfavor das leis morais e das regras objetivas, o resultado é desastroso, catastrófico. A ausência de um referencial ético-moral promove a sensação de vazio, cujas consequências são sempre imprevisíveis.
No que concerne ao tema proposto, se sofremos as consequências de nossos erros inconscientes já foi respondido na introdução, quando assinalamos que todos os atos humanos produzem efeitos independentemente dos estados de consciência. Naturalmente, à medida que ampliamos nossos sentidos, ampliam-se também nossas responsabilidades. Entretanto, não podemos pontuar uma causa precisa por que cada pessoa sofre; aliás, nenhum sistema filosófico sério pode determinar essa questão, pois ninguém possui o monopólio da verdade. É o ser humano que em consonância com o esclarecimento espiritual amplia a sua capacidade de erigir significados e reordenar os seus pensamentos, como nos ensina o Racionalismo Cristão.
Tudo que foi dito é suscetível ainda de aclaração sob outros aspectos. Não é fácil distinguir quando um sofrimento é auto-impingido ou não. E não devemos especular sobre essa questão. A maioria das pessoas acha seu sofrimento maior que o de seu semelhante. Devemos respeitar esse posicionamento.
Concluímos meditando nas palavras do doce revolucionário da Galileia que há mais de vinte séculos afirmou com a autoridade máxima de que era portador: “Quem dentre vós nunca tiver errado atire a primeira pedra”.
Muito Obrigado!