Entre aqueles que se preocupam genuinamente com a sociedade e com o bem-estar dos povos, muitos se perguntam: “quando a humanidade acordará para a espiritualidade?”. Notemos que esse processo já foi iniciado e é contínuo, pois assim é o processo evolutivo: silencioso e ininterrupto. Os desafios parecem grandes, e são, mas não há por que se frustrar ou perder as esperanças. Não podemos iludir-nos acreditando que um dia existirá paz no mundo: a luta é para que saibamos lidar racionalmente com os conflitos, que são naturais. Naturais porque o próprio fato de existirem seres humanos com diferentes interesses significa que sempre haverá algum tipo de desacordo. E, do ponto de vista econômico, há grandes desacordos na Terra.
A evolução espiritual não é um processo linear. Certamente, aqueles que tiverem oportunidade de nascer em lares materialmente bem estruturados terão chance de maior acesso à cultura e até a conhecimentos espirituais, como os que o Racionalismo Cristão difunde. Mas lares mais humildes, de pouca instrução, também são fonte de grandes ensinamentos. A intelectualidade e a espiritualidade podem ser frutíferas em conjunto, mas não caminham necessariamente juntas.
O valor espiritual do trabalho é imensurável, seja o trabalho manual, seja o trabalho intelectual. Por isso, não há justificativas cabíveis para as diferenças sociais a que assistimos, especialmente no Brasil. Neste país, a diferença entre o maior salário e o mais humilde é de cerca de 190 vezes no setor público. No setor privado, essa diferença chega a inacreditáveis 1700 vezes. Nos EUA, o país mais desigual entre os desenvolvidos, essa proporção mal chega a 400 vezes no setor privado. O que leva uma pessoa a pensar que vale 1700 vezes mais do que outra? Países como o Brasil vivem na lógica do privilégio e da escassez, exatamente o que movia a nobreza europeia da Idade Média. Esse foi o modo de pensar predominante até o início da era industrial, no século XVIII. A mobilidade social era extremamente baixa ou mesmo inexistente, e a dignidade das pessoas só era respeitada dependendo do endereço onde moravam. Como de praxe, os privilegiados tentam justificar-se através de uma falsa meritocracia, seja ela divina, seja do esforço próprio. Não enxergam o esforço dos mais humildes ou o histórico destes. Julgam-nos pouco esforçados ou simplesmente burros. São realidades completamente diferentes e bastante incompreendidas.
Não se compreende, por exemplo, que um dos efeitos da escassez é o de que bebês mal nutridos tem seu desenvolvimento neurológico comprometido, numa fase extremamente delicada do desenvolvimento e da saúde de uma pessoa em formação. Além disso, crianças obrigadas a trabalhar para levar sustento aos seus lares, ao invés de estudar, estão deixando de adquirir conhecimentos, numa era em que esse conhecimento fará toda a diferença na sua vida.
A história é antiga. Nos tempos do Império, quando a princesa Isabel promulgou a lei de libertação dos escravos, em 1888, foi obrigada pela classe política da época a desistir de seus planos de distribuição de terras aos escravos libertos que, de outro modo, poderiam recomeçar suas próprias vidas. O golpe militar que inaugurou a República em 1889 já começava com a enorme mancha do privilégio e do racismo. Para “solucionar” o problema do excesso de negros, o governo brasileiro incentivou a imigração europeia com distribuição gratuita de terras aos novos colonos brancos, política que durou até 1914.
Até hoje, estudos indicam que as classes sociais mais abastadas se reproduzem economicamente com base em sua própria rede de relações, tornando altamente improvável que um negro de origem social humilde atinja círculos de maior status econômico. Claro que há exceções, mas, nesse contexto, meritocracia é uma grande ilusão.
No final do século XVIII e início do XIX, as lutas sindicais e os ideais liberais puseram a força do trabalho como conceito primário de liberdade na Europa. Quem pudesse trabalhar, estaria de posse de seu próprio crescimento e autonomia. O salário se torna mais valorizado perante a renda e o lucro. Atualmente, o mundo passa por um contrafluxo: desvalorização do trabalho assalariado e a sobrevalorização de posses, da renda e do lucro. Contornar essa situação não é tarefa fácil, mas a inspiração humanitária dos ideais que impulsionaram tantos movimentos no início da era industrial continuam presentes em toda a parte.
O Brasil, felizmente, já adotou o tipo de legislação que mudou a Europa daquela época, fundado nos melhores ensinamentos liberais: a defesa da proteção à criança, da educação pública universal e da dignidade da pessoa humana, através de sua Constituição Federal. Promulgada em 1988 foi inspirada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O desafio agora é cumprir a Constituição: limitar salários a um teto, enfrentar privilégios e monopólios. não só dos políticos, mas de toda uma casta que sempre os patrocinou.
Impossível não lembrar dos grandes idealistas que nasceram e nascem para ajudar na transformação dessa realidade. Os grandes exemplos são históricos e se espalham pelo mundo:
No Brasil, Luiz de Mattos foi um grande abolicionista e um dos primeiros a propor, por exemplo, um fundo previdenciário para trabalhadores humildes. Hoje a previdência pública é uma das principais fontes de renda de famílias pobres Brasil afora;
Na Índia, Gandhi procurava sensibilizar donos de grandes propriedades de terras, no intuito de obter doação de parte delas para aqueles que precisavam de uma oportunidade de conseguir o próprio sustento (ao final da vida, em vista da incompreensão e egoísmo de muitos desses latifundiários, Gandhi foi levado a crer que a melhor estratégia seria ocupar a terra e depois negociar).
Nos Estados Unidos, Martin Luther King Jr., grande símbolo do movimento que combateu tenazmente o segregacionismo no país.
E de volta ao Brasil, Chico Mendes, que, através de ações diretas, defendia a floresta contra a predação desenfreada. Chico Mendes se elevou ao conhecimento mundial por sua defesa, tanto das riquezas naturais da floresta, quanto daqueles que dependem dela para a própria humilde sobrevivência. Todas essas ações estão permeadas pelo sentimento de solidariedade.
Neste momento, os pensamentos se voltam a outra grande ativista, Marielle Franco: primeira vez vereadora da cidade do Rio de Janeiro, negra, de origem extremamente humilde. Ela vinha lutando no campo da política e do direito há 18 anos para mudar a realidade que a cercava, de escassez e privilégios, tão característicos do país. Marielle foi assassinada, em março, aos 38 anos.
Há anos o Brasil lidera o índice de mortes violentas de líderes de movimentos ambientalistas, indígenas e de distribuição de terras. Foi a primeira vez que um crime como esse foi cometido numa das principais capitais do país. Isso sugere que os autores do crime têm certeza da impunidade, o que revela muito sobre a situação que o Brasil enfrenta atualmente.
Não é porém o momento de esmorecer. Cada personalidade aqui citada inspirou centenas, milhares de pessoas, por gerações. É assim porque as mudanças são lentas, acontecem em termos de centenas de anos. Cada um ao seu modo faz parte desse movimento, inclusive o Racionalismo Cristão. É um movimento que já dura mais de um séculos e nada poderá detê-lo, porque é o movimento da solidariedade, combustível de uma convivência verdadeiramente humana. Continuemos nessa trajetória.