Keep calm and carry on

Luiz de Mattos, em um de seus muitos escritos, afirma que “(…) cada um sofre na exata medida do seu merecimento (…)”. Vamos tratar disso. Antes, porém, cabe destacar algo que talvez passe despercebido na afirmação. Vejam que não é dito que cada um sofre na medida do merecimento. Se assim fosse a frase já estaria clara e suficiente ao entendimento. Mas ele diz mais: não é apenas na medida do merecimento, é na exata medida. Exata medida amplia a precisão e nos fornece nas entrelinhas a percepção da inteireza das leis universais às quais todos estão sujeitos e, exatamente por serem leis, regem-se sob manto do equilíbrio, de algo que não varia, que é incontestável, certo, inerrante, que permanece no mesmo lugar durante todo o tempo e não pode nem consegue falhar. A exata medida do merecimento afasta, assim, qualquer possibilidade de imprecisão.

Dito isso cabe contextualizar o título do artigo. “Keep calm and carry on” é expressão cunhada no período da segunda guerra mundial em que a Inglaterra sofria pesados bombardeios do belicoso regime então vigente na Alemanha e que colocavam em posições opostas os dois países. Pela tática de guerra de devastação, do propósito de destruição total – movido pela irracionalidade de ambos os lados do conflito, pois essa intenção era partilhada por todos os países – a declarada deliberação dos bombardeios era quebrar a inteireza, o brio e a altivez dos ingleses.

Significado. A expressão “Keep calm and carry on” foi impressa em cartazes e surgiu de iniciativa do governo britânico para alertar e motivar os cidadãos daquele país sobre os tempos difíceis que estariam por vir a partir de 1939, ano de início da guerra. A família real – rei, rainha e filhas Elizabeth (herdeira do trono e adolescente na época) e Margaret – decidiu permanecer no país durante o período. George VI era o rei naquela ocasião. Vale registrar que ele foi inspiração para o filme O discurso do rei no qual são retratados os valores e a disposição moral em que os britânicos se colocaram diante do iminente conflito. A História registra que, a despeito de recomendações de conselheiros para que as meninas se mudassem para o Canadá a fim de preservar suas vidas, por forte decisão da Rainha-mãe isso não ocorreu. Sua decisão sobre as filhas e sobre a família real era a de que as meninas não seriam transferidas para outro país sem ela, que por sua vez só sairia do país em companhia do Rei George, seu marido. Este, por dever de consciência e pela exata noção do seu papel como monarca, não deixaria o país em nenhuma circunstância. Em resumo, a mensagem enviada aos súditos era clara: “Estamos dispostos a pagar nossa cota de sacrifício e enfrentar os perigos e riscos da guerra, juntos com o povo.” A propósito disso, vale mencionar que este sentimento era compartilhado por aqueles que tomavam decisões sobre os rumos do país, pois o então chefe de governo, primeiro-ministro Sir Winston Churchill, também se manteve imperturbável diante do conflito e a ele é atribuída a seguinte frase constante no livro Sangue, Suor e Lágrimas: “É melhor morrer em combate do que ver ultrajada nossa nação.” (Churchill, W., Blood, Sweat, and Tears, G. P. Putnam’s sons, 1941).

A essa altura devemos esclarecer o sentido da expressão “Keep calm and carry on”. Significa “Mantenha a calma e siga em frente”.

Muito bem, o que guerra e merecimento têm a ver com espiritualidade? você poderá perguntar. Respondemos: tem o potencial de provocar o exercício do nosso raciocínio e da capacidade de análise diante de fatos que possam nos afetar a despeito de nossa vontade ou nossa iniciativa.

Por análise da proximidade de sentido, podemos dizer que manter a calma e seguir em frente pode ser aplicado em inúmeros contextos da vida diária. Algo alheio à sua vontade lhe causa ou causou algum tipo de prejuízo? Analise, raciocine, busque solução. Mantenha a calma e siga em frente! Alguém toma deliberada e repetidamente atitudes com a intenção de lhe causar algum dano? Reconheça o perigo, estabeleça fronteiras claras, crie táticas de defesa. Mantenha a calma e siga em frente! Forças estranhas à sua vontade estão tentando quebrar sua dignidade, seu brio, seu amor-próprio e sua altivez? Saiba quem você é, quais são seus valores e quem está no comando de suas decisões. Mantenha a calma e siga em frente!

Apenas a título de registro e supondo que o leitor terá suficiente capacidade de entendimento para perceber que estamos fazendo uma analogia e de forma alguma defendendo ou fazendo apologia a qualquer tipo de conflito armado que provoca mortes e destruição, a guerra – em sentido figurado ou não – é um jogo de inteligência como um tabuleiro de xadrez: você faz seus movimentos antevendo os movimentos do adversário ou para provocá-los. Isso o faz movimentar suas peças de acordo com o que você quer, de acordo com sua estratégia, obrigando-o com isso a se submeter e ao final se render ao seu planejamento diante do conflito. Você o vence a partir dos movimentos dele próprio no tabuleiro.

Merecimento. Podemos também mencionar alguns conceitos sob perspectiva do Taoísmo: ceder para vencer, saber cair para saber levantar, puxar quando se é empurrado, empurrar quando se é puxado, utilizar a força do adversário a seu favor, valer-se da força com foco, sagacidade e serenidade. 

E a exata medida do merecimento, o que tem a ver com isso? Tem a ver com a maneira com que encaramos o sofrimento. É humano sentir dor: “Por que isso!? Por que essa bomba!?” Aceitar a exata medida do merecimento ameniza a sensação de estar sendo injustiçado. Sim, injustiças existem, sejamos realistas. Mas a mesma “bomba” ou “pedrada” que dói, que machuca, que causa dor e indignação também serve para nos fortalecer se não desistirmos de lutar.

Pela exata medida do merecimento podemos manter a serenidade e a calma diante das “pedradas da vida”, pois ainda que nos falte compreensão dos seus motivos, pela nossa coragem e lucidez – sim, é preciso coragem e lucidez para aceitar a dor – podemos aceitar as circunstâncias que elas provocam, podemos tomar os sofrimentos como oportunidades de crescimento a despeito da dor. Negar a dor causa ruptura mental entre o ser humano e a realidade dos fatos que o afetam. Como assim uma pedrada não dói? Dói, sim. A dor é real, existe, provoca, instiga, causa sofrimento… mas não deve vencer-nos. Merecemos exercitar nossa força espiritual.

Merecimento! É por isso e para isso que estamos aqui, pelo merecimento, pela oportunidade de crescimento, pela disposição em aprendermos com os erros – os nossos e os dos outros – e com as injustiças. Pela oportunidade de nos mantermos íntegros diante dos perigos, das ilusões e das armadilhas deste mundo.

Estar sob bombardeio (no sentido figurado ou não) não é confortável e ninguém em sã consciência escolhe passar por essa situação, mas em termos de sobrevivência e para manutenção de nossa força espiritual, podemos e devemos adotar atitudes proativas para preservarmos nossa saúde psíquica diante de fatos ligados às situações da vida, como a violência e outras vulnerabilidades. Tenha sempre em mente que você merece estar aqui e diante dessa constatação para a manutenção da normalidade psíquica, como estratégia de sobrevivência e de vitória, mantenha a calma e siga em frente!