As doenças infecciosas encontram no planeta Terra um habitat dos mais favoráveis. Reflexo do modo de viver e pensar de seus habitantes, causa da degradação ambiental em vias de se tornar irreversível, mais os desafios da iniquidade e da irracionalidade pública. “O planeta tenderá a ficar inabitável até o fim deste século”. Helio Jaguaribe, em outro de seus livros consagrados (O Posto do Homem no Cosmos, Edit. Paz e Terra, 2006), esboça a imagem de evolução da espécie humana até um futuro provável. Foco: a necessidade de adaptar-se ao meio, sob pena de acabar como o homem de Neandertal, que se extinguiu diante da era pós-glacial.
O homem e as pandemias estreitaram relações ao longo dos séculos. Sempre associados à natureza, cheia de microorganismos, com vida congelada de milhões de anos. Já havia pestes em 165 e 541, e varíola em 735-737. Um salto grande e chegamos aos séculos XVII e XVIII, conhecidos como “das grandes pragas”, ainda mais ativas no século XIX.
O século XX é farto de epidemias de gripe, transbordando para o século XXI, com as pandemias de coronavírus, a primeira em 2002. Solo, mar e ar poluídos; aquecimento, emissões de gases aumentando; aproximação do humano com o animal por ele deslocado de seus habitats; infestação. A atual pandemia leva à necessidade de ruptura com o rumo precedente, que ignora os ecossistemas, clama Philippe Deschamps, climatologista do Instituto de Geociência do Meio Ambiente, em Grenoble (Diplo, abril 2020). Apresenta-se, diz, como uma prévia ao choque climático; é “o modelo reduzido” e “uma experiência em aceleração do caos climático por vir”.
Primeiro saúde. Este será, talvez, o século da (falta de) saúde – física e mental – e do clima. Tudo o mais a reboque. O vácuo da governança global pende para a Ciência. Com a tecnologia em apoio, bom para os países que se destacarem. Incontáveis, pesados de avisos e recomendações, abalizados relatórios 2020 de organizações mundiais e privadas avivam a lógica infernal dos agentes patógenos – gostando de sair do gelado para o quentinho -, e do impacto da natureza revirada a contragosto. Alardeiam urgência, propõem novas vias com que mitigar os males. Quase pungente o relatório Contagem Regressiva (The Lancet), com sugestões extremas de alguns: partir do zero para conter a ameaça de colapso ecológico. Ou seja, prolongar o decrescimento que a pandemia concedeu, graças à desconexão temporal e geográfica.
“Historicamente, pandemias forçaram o homem a romper com o passado e imaginar um mundo novo. Esta não é diferente”. Assim visiona o indiano Arundhati Roy, em texto no relatório da Oxfam, O vírus da desigualdade. Credita-se à resposta dos governos a “última chance” do homem em promover igualdade e proteger o planeta. O meio ambiente como guia, a partir do efeito estufa e das emissões de carbono, que 1% emite num consumo de luxo e 99% pagam o preço. “Cada dia perdido em reduzir a dependência em energias fósseis onera mais e mais a ação do amanhã”, lamenta Deschamps. Mas russos e afins dispõem-se a deixar a pérola do Ártico? As 7 Grandes do petróleo, de repente filantropas, buscariam outros rumos? Os empenhados em outras fontes abandonariam de vez a alternativa nuclear? Soa como mais uma promessa…
Para Anthony Giddens (A política da mudança climática, Zahar, 2009), a adaptação inovadora do homem terá de ser “antecipatória e preventiva”. Há tempos, o climatologista russo Andrei Lapenis [https://www.eos.org] estimou que, para evitar as projeções de aquecimento de 1,5 graus centígrados em 2060, as emissões globais devem ser reduzidas em 7% ao ano, começando imediatamente. A pandemia, com confinamento e outras restrições, talvez já acuse um declínio temporário de 4% a 7%, mas – como ocorreu na crise financeira de 2008 e na do petróleo dos anos 1970 – os índices sempre retrocedem, e em alta. Ou seja, “os negócios continuam como dantes”.
São as tecnologias inovadoras que dão à Ciência os meios de lidar com o infortúnio. Em meio à Babel de dados científicos e seu processamento, a aposta de agora recai na vacina que garanta imunidade total e abra o portal do mundo novo. Na lista, a vacina universal da OMS, o projeto Covax, com 2 bilhões de doses a distribuir a partir do segundo semestre 2021. “A única esperança real de acabar com a pandemia”, propala. Tem um lastro: em 1974, a vacina universal infantil da OMS. Seis doenças, seis vacinas até 1990: poliomielite, difteria, tétano, coqueluche, tuberculose, sarampo. Mas em 1987, só imunizara 50% do previsto.
Faz uns dez anos, a vacinação coletiva entrou em retrocesso, com visível desprezo pelas campanhas e uma população hesitante e incrédula. 2017, por exemplo, foi um ano muito ruim para a Europa. Isso depois de um contido “apogeu” no século XIX e parte do século XX, que mereceram 28 vacinas específicas, até hoje eficazes. Com destaque para a varíola, precursora da imunização desde 1796-1798, por honra e mérito do médico inglês Edward Jenner. Da vacina antivariólica conta-se que, em 1950, salvou a cidade de Gasglow, na Escócia, de um surto feio. Trezentos mil habitantes foram inoculados em 12 dias. Este ano, a cidade começaria outra vacinação, em 1 de janeiro, usando a vacina inglesa de Oxford.
Fatos e fatos esmiuçados, cabe um crédito de confiança a Maria Van Korkhove, 43 anos. Em férias de Natal do outro lado do Atlântico, ouviu a notícia sobre Wuhan. Especialista em coronavírus, não pensou duas vezes. Dias depois, aterrissava em Genebra, onde vive e trabalha na equipe técnica da OMS, para mergulhar no estudo do novo vírus, inclusive in loco. Sucinta (entrevista a Der Spiegel), responde: o número de casos não tende a diminuir o bastante até o segundo semestre; vacinar os jovens reduzirá o contágio; infelizmente, há que manter as medidas de saúde pública. E direta: “A pandemia cederá; exatamente quando, ainda não sei”. Ninguém sabe. Há mapeamentos que prolongam a vacinação por mais dois anos; só em 2023 ela chegaria aos 84 países de menor renda.
Solitário no cosmos, sem comunicar-se com os demais planetas, o homem ilude mais uma “última chance” de sobrevivência, num planeta cada vez menos identificado como a sua casa. Já identificou o perigo, a fragilidade do habitat, o desgoverno. Na crise dual, vírus e clima, as escolhas tornaram-se irremediáveis.