Maktub – estava escrito
Devo dizer que o mundo está uma balbúrdia. Herdei uma balbúrdia. Vamos cuidar disso. Palavras intimidantes – e recentes – do presidente Donald Trump. “Ninguém ganha uma guerra civil. Ela acabará, pelo menos quanto à fase intensa de ações militares. Talvez este ano”. Palavras instigadoras – e recentes – do analista russo Leonid Asaev. Cada qual com sua visão reflexiva acerca de uma guerra aniquiladora, arrastando-se por seis anos na Síria. Que só acabaria no sentido físico do cessar-fogo, pois ninguém tem meios de controlar o país como um todo. Um desfecho consequência da interferência direta dos Estados Unidos, mas que deixaria o país territorialmente fragmentado, sob a influência da Rússia, Irã, Turquia e Ocidente. O que, de fato, já ocorre.
O 7 de abril 2017, dia do ataque americano a uma suposta base de armas químicas sírias (investigações em curso), marcaria o início da era Trump no Oriente Médio. A julgar pela estreia, bem menos indeciso que Barack Obama e tão agressivo quanto George W. Bush. Para os Estados Unidos, “o principal propósito é impedir a emergência de uma hegemonia regional – ou de uma única autoridade regional que possa dominar a área e estabelecer o controle monopolístico do petróleo no Oriente Médio” (Bernard Lewis, expert e autor). Bem conforme aos fundamentos de uma política de segurança que faz do Oriente Médio zona de responsabilidade da Casa Branca. Esta a essência da política traçada pelo sistema, à frente o Pentágono e a CIA. A ingerência direta inclui Afeganistão, Iraque, Síria. Maktub – estava escrito.
“No vácuo criado pelo comprometimento limitado de Obama, entraram Irã, Rússia e incontáveis organizações terroristas”, constata o cientista político britânico-americano Charles Lister. A guerra já é vista como a primeira jihad xiita internacional da história contemporânea, na avaliação de incontáveis analistas. Mais e mais países cedem combatentes xiitas: Afeganistão, Iraque, Paquistão, Líbano. Os Guardas Revolucionários (um Estado dentro do Estado iraniano) conseguiram estabelecer uma cabeça de ponte no próprio país e uma segunda no Iraque. A Síria proporcionaria a terceira, embora os xiitas em minoria. A mixórdia é total e espirra por toda a região, com combatentes, mercenários, fanáticos.
Encenação. Quatro atores principais encenam a pantomima de combate ao Estado Islâmico (IS). Comecemos pelos Estados Unidos. Apoiam militarmente os curdos, que conseguiram controlar grandes espaços do norte sírio, ceifados pelo IS. Agora, a Turquia tenta evitar que os curdos criem, ali, uma zona contígua, sua. Os coligados ocidentais engajam-se em luta direta e também apoiam grupos rebeldes moderados, contrários ao presidente sírio Bashar Al-Assad e o IS. Buscam a queda de Assad. A Rússia, de Wladimir Putin, sem disfarce, dá ajuda militar ao aliado Assad contra, diz, o Estado Islâmico. O Irã, também aliado de Assad, da mesma forma compromete-se diretamente na guerra, com apoio aéreo para tomar a parte oriental da estratégica Aleppo. Por fim, a Arábia Saudita (e outros países do Golfo) suportam grupos rebeldes radicais islamitas (sunitas).
Constata a revista Der Spiegel: a guerra mais relevante na Síria é a estrutural, a travada entre xiitas e sunitas e suas potências protetoras, Irã e Arábia Saudita – estes ainda envolvidos numa guerra por procuração, no Iêmen.
O Estado Islâmico retrata a manifestação do rompimento das instituições governamentais e propaga as chamas sectárias na região. Mas há, ainda, uma terceira guerra infensa: entre Washington e Moscou, pela liderança geopolítica global. Que papel se arrogam no mundo? Que papel, de fato, lhes cabe? Se os Estados Unidos não abdicam do Oriente Médio, tampouco a Rússia afasta-se da dimensão europeia de sua geografia.
Ucrânia. Diz o autor Robert D. Kaplan (A Vingança da Geografia, Elsevier Editora Ltda., 2013): “Ao contrário, sua fixação na Ucrânia como parte de um projeto mais amplo, no sentido de restabelecer uma esfera de influência sobre os vizinhos imediatos, é prova de seu desejo de ancorar a Rússia na Europa, ainda que em termos não democráticos. A Ucrânia é o pivô capaz, por si mesmo, de transformar a Rússia”.
A violência, desmedida e incontida, assoma a catástrofe humanitária e cultural. Segundo a Agência da ONU para Refugiados, em 2016 somavam 6,5 milhões os refugiados internos, 4,9 milhões espalhados só na região (Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito) e 250 milhões de mortos. Os doadores entraram com ajuda financeira sem precedentes: US$ 2,88 bilhões. E criou-se um programa especial, ‘Geração Não Perdida’, que já atinge 1,3 milhão de crianças e adolescentes, além do programa oficial 3R: regional, refugiado, resiliência. Faz dois anos, o comissário da ONU para Refugiados, António Guterres, alertava: “Já existem mais de 51 milhões de pessoas em fuga no mundo”.
País europeu que acolhe o maior contingente do êxodo sírio, a Alemanha ocupa-se, também, do patrimônio cultural. Pouco ou nada resta nas cidades destruídas, saqueadas, espoliadas, até porque destrói-se também para construir. Há mais de 300 locais arqueológicos danificados ou destruídos, a começar por Aleppo, Damasco, Homs, Palmira. O fim do conflito demarcará o início dessa reconstrução, a cargo do Projeto Arquivo do Patrimônio Sírio, mas que ninguém sabe ainda como fazer. Em Berlim, é através dos museus que refugiados sírios acompanham e ajudam na tarefa de restauração. Em junho do ano passado, a Unesco conseguiu ali reunir 170 arqueólogos, arquitetos urbanistas, restauradores e peritos para debater a “hora-zero – um futuro para o após a crise”. Maktub.
Clecy Ribeiro
Jornalista, professora das Faculdades Integradas Hélio Alonso, RJ