Na trilha do humanismo

Sai ano, entra ano e, como dizem os franceses, “déjà vu”. Agora veremos tudo com cores mais vibrantes, que o exacerbado, o surreal despontam, airosos, nas sacudidas de um ressuscitado internacionalismo reacionário de fato, quando a Argentina elege um presidente a que o Diplo chama “célebre, mas pouco credível”. Contudo, a eleição de Milei parece menos uma adesão majoritária a essa corrente do que o esgotamento com a situação do país. Afinal, trata-se de uma ideologia heterogênea, geograficamente dispersa, com mais impacto na Europa e presença nos Estados Unidos. As “periferias” (Europa oriental e América Latina) são terrenos de expansão dentre grupos mais descontentes – extremistas e libertários.   

Há riscos, contudo. Uns 70 países elegem seus governantes neste 2024. Obviamente a mais importante, a eleição nos Estados Unidos, que amarga estar perdendo o trono hegemônico. É crença comum que a política externa pouco influi em eleições presidenciais americanas. Para o povo, contam os dados econômicos. Mas as “guerras de defesa”, Ucrânia e Gaza, e a “ameaça” da China entram na estratégia temática dos candidatos, particularmente dentre os de maiores raízes falconistas. Aborto e clima são os assuntos domésticos de alarde, com falatório e divisão. Os democratas ganham ponto quando defendem os direitos ao aborto como imperativo moral, e os estados “swing” (sem fidelidade partidária) soam como uma esperança de mais votos. O presidente Biden, embora não seja um cruzado passional pela causa, tem postura flexível. Em relação ao clima, há pressões para aumento interno na produção de energia. Sempre presente o petróleo; há oposição a incentivos à energia verde e carros elétricos, conforme demonstrou a greve da indústria automobilística, e resistência também à tecnologia do sequestro de carbono (causa democrata), porquanto controversa e cara.

(Um parênteses: o Brasil está na caldeira do petróleo companheiro inseparável da transição energética. Vem de adotar (agosto) projeto para uma economia de impacto social – negócios que priorizem o povo e o planeta. Pretende maior diálogo público/privado ir além fronteiras e ideologias.

Tem apoio do Fórum Econômico Mundial, via Capítulo Brasil do Catalyst 2030.).

Voltando a Washington, fala-se num repeteco de 2020, e talvez com o mesmo resultado, se a candidatura Trump vingar. Acreditam os republicanos que, para ganhar, bastaria um terceiro candidato, capaz de furtar votos a Biden. Como Joe Manchin, democrata, empenhado no que já se chama uma campanha de desperdício de US$ 70 milhões do partido ‘No Labels’. Há, ainda, o movimento progressista AOC no Congresso, com uma agenda ambiciosa que divide os democratas. Em livro recém-publicado, The Squad (descrição em theintercept.com), o jornalista Ryan Grim relata o que está em xeque: uma revolução política. Squad é como a mídia chama um grupo de seis políticos, com agenda esquerdista agressiva, lutando por reforma. Tem origem na campanha do senador Bernie Sanders, em 2016, quando Trump ganhou. Grim também está envolvido na campanha contra a prisão de Assange, se concedida sua extradição para os Estados Unidos, na última audiência do caso, em Londres, neste começo de 2024.

Trump continua favorito do GOP e capitaliza o descontentamento com a economia. Biden apoia-se no slogan “the middle out and the bottom up” – crescer a partir do meio ou da classe média. Estaria mais propenso a vencer do que muitos pensam, apregoam alguns círculos; bastaria fazer a cabeça do eleitor contra a agenda Trump de cortar impostos e reduzir gastos. Faz pouco menos de um ano, a Rand Corp. observava: nas últimas quatro décadas, houve uma transferência de  aproximadamente US$ 50 trilhões da riqueza dos 90% embaixo para o 1% mais rico. Desde a crise da covid, a riqueza dos multimilionários cresceu mais de 50%, e a dívida dos consumidores chegou a US$ 300 bilhões sem precedentes.       

Numerosos historiadores ocuparam-se, e ainda ocupam-se, de estudar os debates conflituosos que, no curso dos tempos, ideias ou posturas novas opõem a outras grandes tradições de pensamento. Lembra Michel Onfray: uma civilização não produz uma religião, porque é a religião que produz a civilização. A economia nada conta na produção de uma civilização, porque todas, sem exceção, erigem-se a partir do capitalismo, que pode ter várias versões. E, a cada cabeça cortada, nasce outra. Por isso, as civilizações são, por assim dizer, incomparáveis. “Uma civilização morta obedece ao esquema que a conduziu do nascimento ao desaparecimento, via momentos de crescimento, ascensão e queda. A civilização nascente obedecerá ao mesmo ciclo”. E assim até o fim das civilizações territorializadas. Desta história, temos dois marcos: o do ressentimento, a partir da Revolução Francesa e as duas guerras mundiais seguintes, e o da civilização planetária, a partir do 11 de setembro 2001 e toda a destruição consequente, Islã versus Ocidente. E que ainda se faz presente em ritmo de iconoclastia.

Pepe Escobar, jornalista e autor, estende a história (artigo no Brasil 247, 26-11), antecipando a ascensão das três principais civilizações territorializadas. Mais estruturados e menos caóticos já estão: o Islã moderado, o taoísmo/confucionismo chinês, o cristianismo ortodoxo. Sua sobrevivência iria até a inexorável chegada da civilização desterritorializada, planetária, única. Que, hoje, só a podemos descrever pela ficção cientifica de Aldous Huxley e seus mundos novos. Segundo o teólogo suíço Hans Küng, essas são três religiões de pregação humanitária e compartilhamento. A Igreja Ortodoxa conseguiu manter-se sob todos os sistemas políticos, até mesmo durante a última perseguição de 70 anos sob o regime comunista, com milhares de mártires. No confucionismo chinês, a humanidade é o fundamento para uma ética comum de comportamento para com o próximo, a sociedade, a natureza; ética e moral. No Islã, persiste a divisão dos três partidos (xiita, sunita, harigita). Como em toda religião, há violência, mas são claros os imperativos de humanitarismo e justiça. Há também reformadores em busca de uma base espiritual para a economia, cultura e sociedade, pois a religião expande-se.

Os BRICS já são citados como início desse próximo mundo, de reorganização da ordem. Como armas, a coexistência e tolerância, a par o capital político-monetário. Outras tendências ‘déjà vu’ que se abrem num ano 2024 de stress: a confirmação das desigualdades, projetos climáticos à mercê da geopolítica de crises interconectadas, nova crise global de saúde. E rupturas provocadas pela decantada inteligência artificial, a ponto de incomodar os fardões da Academia Brasileira de Letras (Revista Brasileira 115).

Até quando o mundo em descontrole do homo bellicus nos privará do mundo ainda inimaginável do homo sapiens?