No expertise eletrônico, a chave do sucesso. Miniaturização para as máquinas “verdes”. Muitos países em vantagem – Estados Unidos, China, Índia, Coreia do Sul, Japão – embarcam em investimentos triliardários, em que o semicondutor desponta altivo e lucrativo. Recursos não renováveis, em uso a mancheias, engrossam a lista das perdas definitivas para as gerações futuras. Como avaliar os impactos, disfarçados pelas indústrias no mito da desmaterialização do digital? Num bosquejo das tendências em marcha sob o mito de sustentáveis, chega-se ao fato: tanto mais complexo o objeto, técnica e materialmente falando, mais pesada sua bagagem material e ambiental. Inclusive a internet, de informação gratuita, eivada de gastos incontabilizáveis.
Cena inferno numérico. Livro assim denominado conforme a imagem do jornalista Guillaume Pitron. Estilo documentário: viagem por dezenas de países em quatro continentes e fartas entrevistas, depoimentos, observações pessoais em empresas e fazedores de eletrônicos e conexões afins. Uma avaliação in loco do que está em jogo nestes tempos insinceros de “desmaterialização”, dos quais nós, simples mortais sem expertise, nada percebemos além da espuma. Se, na Guerra dos Metais Raros, sua obra anterior, Pitron apresenta o que chama face oculta da transição energética e digital, neste Inferno Numérico trata da materialidade com que se pretende chegar ao imaterial – minas, redes, cabos nas profundezas do mar, centros de dados, terminais, conexões, computadores, smartphones, suas aplicações e o que mais seja. O mundo interconectado da produção, consumo, negócios, com tendências em marcha que, lembra o autor, nada têm de sustentáveis.
Fato um: tanto maior a complexidade do objeto, maior sua bagagem material. Fato dois: os impactos do numérico dilaceram os recursos renováveis e consomem-se na infraestrutura de cabos e fios ligando cidades, países, territórios, mares, montanhas. Pitron é cético: o numérico é um fardo na transição ecológica; destrói o planeta. Durante muito tempo, diz, a ideia de uma indústria numérica limpa, porque imaterial, dominou os espíritos. O próprio Vale do Silício pareceu aliar-se à luta. “Essa ilusão dissipa-se… A poluição digital é colossal, e é ela que cresce mais rapidamente”.
O elemento terras raras ganha maior espaço, como fator de nova dependência, se é que o mundo está mesmo se emancipando das energias fósseis. São recursos cada vez mais indispensáveis à gula da “nova sociedade ecológica”. Custos dramáticos, porquanto impossível imaginar qualquer peça da moderna tecnologia sem eles. O automóvel será, talvez, o que mais os consome. E o que dizer dos smartphones e computadores? Embora abundantes (o termo raro é errôneo, reafirmam os pesquisadores), são de extração complexa, porque incrustados em outros minérios.
No início deste século, a China ganhou o primeiro lugar como produtor mundial. Austrália, Brasil, Cazaquistão, Malásia, Rússia, África do Sul, Estados Unidos seguem. A China detém o monopólio e ditou preços de 2009 a 2011, bem como cotas de exportação. Em 2017, o Brasil chegou ao segundo lugar em reservas mundiais (3,5 bilhões de toneladas dos lantanídeos), junto com o Vietnã e Rússia. Mas a demanda vem crescendo a uns 10% ao ano. Ou seja, conflito comercial visível entre os grandes do mercado: China e Estados Unidos. A desmaterialização ao abrigo da tecnologia, segundo Pitron, nada é senão “materializar de outra forma”.
Cena metaverso. Visão 2021 do Facebook, rede de mídia social braço da empresa Meta Platforms, que comemora seus sete anos com 3 bilhões de usuários. Acesso diário de 50% em média. Gratuito. Anúncios sustentam a empresa no site. O ímã ainda é Mark Zuckerberg, idealizador e cofundador, com uma história que oscila entre o fazer rápido e romper com a norma. Estudante, violou a política de Harvard para angariar recursos ao Facemash universitário. Vingou o sucedâneo e ora global TheFacebook.com.
Duas décadas de sucesso. Sempre inovando, publicidade crescente e a novidade do engajamento direto do consumidor. Mais e mais empresas aderem ao mercado de anúncios na rede. Mas o Facebook, não imune a percalços, leva Zuckerberg a audições no Senado e a responder ações em 46 estados americanos, por abuso de poder. As críticas? Controle do conteúdo, invasão de privacidade, informação falsa, falta de confiabilidade, incitamento, extremismo político. Um Facebook chamado às falas por seu papel (frequente) de caixa de ressonância de mensagens de ódio, discriminação ou assédio. Faz uma década que a empresa encontrou novos veios, abrindo-se em oferta pública inicial de $16 bilhões.
Agora temeroso dos danos – financeiros e à imagem –, Zuckerberg recorre à mudança de nome (ou nova identidade?). Projeta-se, em banho-maria há anos, a experiência do metaverso, fusão de meta e universo, outra era de experiências humanas em mundos digitais. Passar da atividade on-line atual em 2D para a 3D, com realidade virtual amplificada e interconectada para imersão num mundo algo híbrido, onde se está incorporado. “Em vez de ver o conteúdo, você está no conteúdo”; “é como sentir-se com outros, no mesmo lugar, mesmo se estão a quilômetros de distância”. Ele mesmo explica. Aflui, perigoso, o poder de sedução, que se aproveita do sentimento de segurança – imergir num espaço virtual sem a imprevisibilidade do espaço físico. Mas anômalo, lembramos nós.
Há meses, um alerta. Documentos do ex-funcionário do Facebook, Frances Haugen, ao Senado americano, e testemunho ao Parlamento britânico e (a convite) à Assembleia Nacional da França, define o projeto: privilegiar o próprio interesse, em detrimento do público. Tem razão. O metaverso ambiciona o controle de acesso aos mercados domésticos e externos, agora já com suporte da Microsoft (que desenvolve a plataforma Teams), Nike (calçar os avatares), Carrefour. Outros mais acompanharão, aparecendo com seus produtos nessa pretensa e estranha simbiose de humanos e avatares, conectados por dispositivos em que tudo será possível: comunicar, ensinar, trabalhar, comprar e vender, visitar, pagar, explorar, vestir e despir…
Cena internet e os jovens. “Nossos filhos são nativos digitais. Nasceram em um mundo em que a internet é onipresente, como principal meio de comunicação, convivência e fonte de informação. Sabem desbloquear um celular desde bebês e com seus dedos ágeis dominam o uso das novas tecnologias. Mas será que isso significa que entendem as implicações do que estão fazendo?”
Um guia para a família, saído do forno da plataformademocratica.org, apresenta-se como apoio à educação/ensino, tanto no meio físico como digital, com foco na reflexão e discernimento, bem como emoções e sentimentos. Abordagem sociológica e psicológica, de objetivo único: que os filhos ajam “pensando de forma autônoma dentro e fora da internet” – este o título do guia, com texto de Bernard Sorj e Alice Noujaim – e no lidar com os desafios do virtual. Desafios que incluem a dessensibilização, desinformação, cyberbullying, aceleração do tempo, “eternização” das informações pessoais em bancos de dados.
É preciso entender que existe um outro, que também tem formas próprias de ver o mundo. Ponto de partida. E, sob uma forma didática de “vieses”, escorregam sugestões e conselhos. É preciso buscar a verdade, aceitar visões diferentes e o direito a “ser de seu jeito”. É preciso evitar preconceito, maniqueísmo; reconhecer a privacidade como valor; discernir informação e desinformação. “Acreditamos que o uso crítico da internet merece um lugar no currículo escolar e em casa, no dia a dia de todas as configurações familiares”. E somem-se os custos inerentes à posse e manutenção da parafernália indispensável.
Literal e metaforicamente, cai a máscara do imaterial.