O fator moeda ascende sobre os demais tópicos da atualidade. O retrato do dólar é de uma moeda tóxica, com impressão desmesurada, a fabricar dívidas que nenhum país pode pagar. Foco de pressão e subjugação. Além disso, suas reservas são suscetíveis de confisco, por sanções aos “desviados” da ordem mundial vigente. Há quase 40 anos sofre ameaças percebidas, nunca concretizadas, mas desde o início deste século XXI elas se tornaram prenúncio do inevitável. O último pilar de sua sustentação, vaticina o sociólogo e autor Lejeune Mirhan, seria o petróleo; seu comércio cresce em yuan.
Debate prolongado, extenso e intenso, carregado de tensões desde começos da década passada. A busca por alternativas acabou por gerar um conceito muito além da moeda: o de um substituto do sistema econômico-financeiro atual, tido como volátil, predatório, obsoleto. Surge, enfim, algo como um modelo integral de economia mista, filosofia e espírito de ganho mútuo, que permitisse ao Sul Global respirar. O processo envolve cientistas econômicos da estirpe de Michael Hudson, Radhika Dekai, Sergey Yuriyevich Glazyev e muitos mais, muitos livros e papers, muitos projetos e alguns derivativos para a agonia do dólar. Por exemplo, uma moeda com lastro ouro ou uma moeda única para comércio exterior no Brics, o rublo com lastro ouro, a internacionalização do yuan, uma cesta de moedas apoiada em ouro e commodities etc.
Na série Hora de Economia Geopolítica (Clube Valdai, fevereiro e abril passados), Hudson e Desai fazem um histórico completo do sistema atual e da desdolarização em curso. Do Consenso Washington ao Consenso Pequim, ressaltam os “ganhos assombrosos” da China nos últimos 30, 40 anos. Colocam, assim, a China no centro das correntes de possibilidades e alternativas para um novo sistema. Para Glazyev, ministro da Integração e Macroeconomia da União Econômica Eurasiana, há que considerar cinco frentes num projeto de economia integrada. Na frente monetária e financeira, diz, o domínio americano começa a agonizar. A China já assumiu a dianteira na frente comercial e econômica; avantaja-se também na frente tecnológica e de informação. Na frente guerra biológica, o que sobrou dos laboratórios na Ucrânia, onde a frente militar aflorou o calcanhar de Aquiles dos Estados Unidos? Os Estados Unidos usaram o dólar e a guerra financeira contra a Rússia, por meio de sanções, que acabaram tendo um efeito bumerangue, apesar dos danos incluindo terceiros.
Nada definitivo. Âmago do debate, a queda do dólar significaria o eclipse da hegemonia americana. A parcela da moeda nas reservas globais vem declinando substancialmente desde fins dos anos 1970, quando chegou a 85%. De 2014 a 2020, essa parcela (pagamentos ou ajustes) caiu de 60,2% para 46,72%. Um incentivo ao uso de outras moedas. A cada dia, fazem-se mais acordos bilaterais (comércio nas próprias moedas), acordos multilaterais (via Organização de Cooperação de Xangai, Novo Banco de Desenvolvimento, Brics), outros sistemas de pagamentos (cartão MIR russo, o SIP chinês, o ELO brasileiro). A expectativa, ou perspectiva, é de que o dólar se feche num círculo cada vez mais estreito de portadores de títulos, fundamentalmente nos Estados Unidos. Então, que moeda? Resposta de Hudson e Desai: não será outra moeda nacional com modelo na libra esterlina ou no dólar. Estamos vivenciando uma desneoliberalização. A moeda seria algo ainda a ser politicamente definido pelos governos envolvidos. “E é isto que os Estados Unidos temem”.
Enquanto isso, a China empenha-se em cultivar sua diplomacia de cooperação e bem comum. Data de 21 de fevereiro mais um paper conceitual, divulgado pelo Ministério do Exterior: a Iniciativa de Segurança Global. Em esboço desde 2022, reforça conceitos já conhecidos – respeito à soberania e integridade territorial, não interferência em assuntos internos (que cada país escolha seu sistema e solucione seus problemas), respeito à lei internacional com apoio a papel maior da ONU e seus órgãos. O cenário exposto é de déficit crescente da paz, desenvolvimento, segurança.
Com foco amplo nos países em desenvolvimento, menciona as regiões de per si: Ásia, América Latina e Caribe, Oriente Médio, África, Pacífico. E a temas mais preocupantes: informação, biotecnologia, saúde e covid-19, alimentos e energia, clima, crime organizado. Referências à interligação de mecanismos multilaterais de cooperação sugeridos completam o paper, que se entende como uma arquitetura balanceada de segurança universal e comum. A China pretende, inclusive, estender além fronteiras um programa de treinamento de profissionais especializados, nos próximos cinco anos.
Um novo mundo. Neste mês de novembro, a celebrar mais um livro de Glazyev – o artífice, ou um dos artífices, do sistema econômico integrado em nascimento? Em tradução literal desta edição em inglês, ‘Saltando para o Futuro: China e Rússia no Paradigma do Novo Mundo Tecno-Econômico’ é um livro-análise sobre a essência das mudanças estruturais na economia global, segundo os editores Royal Collins Publishing Company. Nele, insinua Glazyev que a solução da crise global pode estar nesse paradigma. O dique União Econômica Eurasiana/Iniciativa Cinturão e Rota centralizaria a estrutura mundial das relações econômicas.
Já em The last world war, 2016, Glazyev introduzia os precedentes da pretendida nova ordem, denunciando o “segredo” da política anglo-saxônica: há uns dois séculos, dita dominar com guerras na maior parte do planeta, sem nunca admitir o inimigo em seu próprio território. E por que a Ucrânia? Segundo o pensamento de Zbigniew Brzezinski, para derrotar a Rússia, seria preciso arrancar-lhe a Ucrânia e dominar a Eurásia. Ao mesmo tempo, enfraquecer a China pela guerra comercial. Um passo à frente rumo à guerra mundial moderna, sonhada pelos neocons americanos. Um passo atrás, a comparação elucida: às vésperas da Segunda Grande Guerra, empresas e bancos americanos investiram 800 milhões de dólares na indústria alemã e no sistema financeiro. Deu no que deu. Quanto à Ucrânia, se na Otan, ficaria impedida de compor a União Aduaneira Rússia-Bielorrússia-Cazaquistão que, com a União Econômica Eurasiana, levaria à integração econômica desse espaço pós-soviético. Mas, ressalta Glazyev, conforme a lógica dos centenários ciclos de acumulação, os Estados Unidos não podem ganhar a guerra que provocam. Evitar a terceira guerra mundial impõe criar uma coligação mundial antiguerra (o que está acontecendo), harmonizar as relações internacionais (o que se tenta fazer acontecer).
Caminhos tortuosos. Conflitos arrastados continuam a irromper com violência incontida, insolúveis. O ano de 2024 promete.