Os nossos dois ‘eus’
“Uma introspecção nos dois “eus” dentro de um homem esclarece muitas confusões e contradições. Foi nosso entendimento que precedeu à nossa vitória”. Vernon Howard
Se eu tivesse que responder à pergunta sobre o que é a vida terrena, eu poderia simplesmente dizer que é “estar no aqui e no agora”, realizando o meu projeto de vida de encarnado. Nada mais intuitivo que isso porque o passado já não é mais e o futuro ainda é. E diria, também, que nada é mais verdadeiro que isso, mas infelizmente este conceito não basta. É preciso aplicar, adaptado para a espiritualidade, o ensinamento de Sócrates contido na frase: “conhece-te a ti mesmo”. Por isso, neste artigo, vamos aprofundar-nos nesses conceitos.
Quando encarnamos, nosso espírito, ou seja, nossa essência espiritual – que é o nosso “eu” real ou verdadeiro, se individualiza como criatura única, com seus atributos. E, mais que isso, o indivíduo é dotado e passa a dispor de seu livre-arbítrio, o que lhe permite pensar e fazer o que bem lhe aprouver, um poderoso instrumento que o responsabiliza pelos seus atos. Mas ao se posicionar neste mundo como espírito encarnado ele não está só. Terá que conviver com seus irmãos em essência para prover a sua evolução. Ou seja, falando pragmaticamente, ele terá que se relacionar com seus semelhantes nas mais diversas circunstâncias da vida terrena. Como consequência de sua atuação nesse sentido amplo, seu “eu” se exterioriza para enfrentar os desafios da vida comunitária ou, mais precisamente, sua vida em sociedade, iniciando-se na vida familiar como ser humano que passou a ser. Então, tão logo ele se joga para o mundo exterior ele passa a dispor de um segundo “eu”, que vamos denominar como seu ego ou seu “eu experimentador”. Este é o “eu” que está vivendo a experiência atual no nosso aqui e agora.
Estudos realizados nos Estados Unidos demonstraram que o eu experimentador (ego) está presente em tudo que realizamos e só se aquieta quando estamos sozinhos e serenos, em concentração profunda, em meditação ou em absoluto silêncio. Nestas condições, o eu real ou verdadeiro reina absoluto. Uma corrente de psicólogos denomina esse eu de “eu projetivo”, que estrutura os nossos pensamentos, olha para o passado e para o futuro, atravessa essa interface e pensa sobre a vida. Esses dois “eus” são ambos comandados pelo nosso espírito, porém o eu experimental ou ego está mais diretamente ligado à faculdade do livre-arbítrio (voltado para o exterior, para a nossa vida de relação), enquanto o eu real ou projetivo está mais intimamente associado aos atributos do espírito (voltado para o nosso interior) sob a vigilância da nossa consciência.
Desses estudos podemos concluir que pensar e refletir sobre a vida e vivê-la são coisas bem diferentes, porém uma não é mais importante que a outra por serem complementares. Aqui não há antagonismo, mas o importante mesmo é sabermos as diferenças de cada “eu” para atendermos às suas demandas, sem deixarmos vitimizar-nos quando se tratar do “eu experimental” ou ego. Assim, precisamos sempre ponderar sobre cada “eu” e suas diferenças, já que são eles que constroem e consolidam nossos valores nas experiências que vamos absorver da vida. É dessa sabedoria que vamos experienciar ou não a felicidade relativa que esse mundo pode nos proporcionar, guiando-nos para um aproveitamento real de nossa evolução em cada reencarnação.
Vamos explicar melhor suas diferenças sob a ótica da espiritualidade. Esta separação dos dois “eus” no mundo terreno deriva da funcionalidade de cada um, pois para alcançarmos uma vida equilibrada precisamos viver as duas vidas, a espiritual e a material. No meu ponto de vista, quanto mais espiritualizados formos mais reduzimos a distância entre os dois “eus”, até o ponto em que o “eu experimental” não se torne mais necessário, por não precisarmos mais adquirir novas experiências relacionais. Neste ponto, enquanto ainda encarnados estivermos, nossa vida se tornará mais serena, mais feliz do que vinha sendo. Em muitos casos, estaremos quase inteiramente voltados, inconsciente e conscientemente, para o nosso “mundo interior”. É a chegada da razão pura de nós mesmos, bem como de tudo e de todos que se encontram ao nosso redor.
Nessa linha de pensamento, podemos imaginar que, quando estamos conversando com outra pessoa, temos quatro “eus” relacionando-se com conhecimentos, experiências e interesses diferentes envolvidos. Imaginemos, então, em um círculo de pessoas! Daí porque precisamos de muita cautela, muita atenção e muita compreensão para termos um bom diálogo, respeitando a vez de cada um expor suas ideias para que, ao ouvi-las, possamos chegar ao bom entendimento sobre o assunto em pauta.
Em nosso artigo publicado neste jornal sob o título O egocentrismo, em janeiro/2014, tratamos do problema do ego, segundo outra vertente psicológica, mostrando que os egocentristas priorizam os seus desejos em consonância com sua ação centralizadora imersa sobre si mesmos. Aqui, a ênfase que demos foi a de mostrar que o mundo para qualquer pessoa é muito mais ela e menos os outros, estes sempre num papel secundário. Também, deixamos claro, segundo a psicologia, que o ego é a instância psíquica que permite que um indivíduo tenha consciência de si mesmo. Nesse sentido, é a consciência que individualiza o “eu”, enquanto sob o ponto de vista da espiritualidade é o espírito que caracteriza os três: a consciência e o os dois “eus”.
Outra qualificação, mais clássica, adotada pela psicologia para classificar os tipos de ego ou “eu experimental”, também chamado de “eu experiencial” dos indivíduos, é a de introvertidos e extrovertidos, os primeiros, indivíduos voltados para dentro de si mesmos (self 1) e os segundos, indivíduos voltados para fora de si mesmos (self 2).
A classificação conceitual do self em self 1 e self 2 foi estabelecida por Timothy Gallwey, quem diria, um treinador de tênis, nas décadas de 60-70 do século passado, nos Estados Unidos, pioneiro no movimento da psicologia aplicada ao esporte e ao mundo corporativo e reconhecido como o fundador do conceito Coaching.
Timothy escreveu vários livros e se tornou, ele mesmo, um destacado coach. Ele notava que jogadores de tênis balbuciavam frases sempre que erravam as jogadas, por exemplo: “ora bolas, errei de novo!”; “caramba, como pude fazer essa jogada?” Conversando com esses jogadores ele fez a seguinte pergunta: “com quem você está falando?”. E a resposta quase sempre era a mesma: “estou falando comigo mesmo”. Daí, Timothy procurou entender quem era o “eu” e quem era o “comigo mesmo”. A partir disso ele conceituou o “eu” propriamente conhecido como sendo o self 1 (introvertido) e o “comigo mesmo” como sendo o self 2 (extrovertido), classificação essa que é adotada nos procedimentos de Coaching e cujas características foram elencadas no referido artigo de minha autoria. A palavra self (próprio) foi incorporada em nosso vocabulário.
Caruso Samel
Escritor, militante da Filial Butantã (SP)