‘Vende-se uma ideia errônea de que a maconha é uma substância inócua, mas não o é. Ela tem relação com surtos psicóticos e pode até agravar um quadro de esquizofrenia’. A afirmação é do Dr. João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (Sicad), órgão português que tem por missão promover a redução do consumo de substâncias psicoativas, a prevenção dos comportamentos aditivos e a diminuição das dependências.
Trata-se de um dos maiores especialistas em combate às drogas no mundo e que, há mais de 20 anos, toca a política antidrogas em Portugal numa prática que é referência internacional e que tem por base a descriminalização do uso de entorpecentes. Portugal hoje é um dos países com menor índice de consumo de drogas.
Combate às causas. João Goulão entende que se deve identificar e atacar as razões que levam ao vício antes de se pensar em punir o usuário de droga. Entende também que é impossível imaginar solução para o problema sem haver uma rede efetiva montada pelo governo, em várias instâncias, para a recuperação e reinserção social duradoura. Afirma que é preciso deixar de ver o uso de drogas como crime e passar a tratá-lo como questão de saúde pública.
Em entrevista à jornalista Daniela Pinheiro, do UOL, ele lembrou a epidemia de heroína que assolou Portugal logo após terminada a ditadura salazarista. Morria uma pessoa por dia no país, vítima de overdose, e o índice de infecções por HIV era o mais alto da Europa.
Dr Goulão disse ter visitado a cracolândia há alguns anos e, pelo que viu, acredita ser impossível resolver aquele problema sem uma abordagem parecida com a que fizeram em Portugal, onde o consumo de drogas foi descriminalizado, mas não despenalizado. Foram treinados centenas de profissionais para atuar junto aos viciados, após avaliação de uma junta de especialistas em comportamentos aditivos e dependência química.
“A ideia é buscar entender o que está por trás do uso da droga. Problemas pessoais que estão coexistindo com o consumo — às vezes questões de família ou com o próprio gênero — e a intervenção é feita ali, antes que ele evolua para um consumo mais pesado”, explicou Goulão.
Percebeu-se que o usuário dificilmente procuraria tratamento ou apoio psicológico por conta própria, mas, atendida e recebendo cuidados, a maioria absoluta continuava o processo. Essa ideia de que havia uma “luz no fim do túnel”, que a pessoa era tratada e acolhida, que o Estado se importava com ela, que ela poderia, sim, ter uma oportunidade de mudança de vida e hábitos para um estilo de vida mais saudável e até um emprego, redefiniram a sociedade portuguesa. Até hoje, a estratégia é um sucesso.
A heroína deixou de ser um problema em Portugal. Entretanto, o uso da cocaína cresce, o crack está chegando à população de baixa renda, mas ainda é a cannabis a droga mais consumida no país (e no mundo).
Goulão vê com desconfiança a urgência em se legalizar a maconha para uso recreativo. Haveria uma certa desonestidade intelectual no debate quando se coloca no mesmo balaio a medicinal — cuja dosagem, intensidade e frequência são controladas — e a recreativa. Para ele, ainda pairam muitas dúvidas sobre a pertinência da medida e sobre os reais impactos na saúde mental dos usuários.
A questão dos menores. Há inúmeras questões que precisariam ser ainda debatidas. Por exemplo, a idade mínima. Como o mercado se comportaria em termos de fornecer maconha a menores de idade? O fato de as gigantes do tabaco estarem apostando na legalização da cannabis, de olho na comercialização é, segundo Goulão, outro sinal de que se deve refletir um pouco mais. “É preciso discernir o que é o interesse econômico e o que realmente importa para a saúde pública”, afirma.
O médico entende que “a literatura sobre a cannabis é muito influenciada por por questões ideológicas. Depende de quem a faz. O fato é que as evidências científicas sobre o real impacto ainda são muito limitadas.”
Ele explica que a geração mais nova vive o momento das drogas sintéticas, associadas a um estilo de vida glamuroso, divertido e “que parece pertencer a vidas de grande intensidade. E questiona: “Como argumentar com um adolescente para que ele não use a droga se ela serve para tratar doenças?” Para ele, a conversa tem que acontecer no âmbito das escolhas pessoais e das consequências dessas escolhas.