Pot pourri do (re)alinhamento

Duas datas importantes a celebrar no próximo mês: o 11 de Setembro 2001 e os dez anos da Iniciativa Cinturão e Rota, nome novo das antigas rotas da seda. Não queremos conquistar, mas fazer comércio – esse o mote da China, a se projetar até 2049, quando do centenário de sua República Popular. Há mais um encontro, absolutamente impensável até então, qual o dos Brics, na África do Sul. Deslancha o marco de desenvolvimento progressista deste século XXI, dinâmico e inusitado. Terá sido a guerra na Ucrânia o gatilho visível. Vai acabar, mais dia menos dia. Mas as questões empilhadas na cesta mundial são para ficar, emolduradas por uma geopolítica em fervura. Nunca tantos conversaram tanto para chegar a algo assim como viável, factível, aceitável, possível, desejável, recomendável, racional. Uma política de harmonia em contrapeso à política do medo, hegemônica. O mundo multipolar nascendo, com suas instituições multilaterais. Haverá mais surpresas, nesse agitado setembro, quando da Assembleia Geral da ONU, onde a briga se fecha no Conselho de Segurança?

Vai-lá-vem-cá. Emissários especiais do Papa (a Kiev e Moscou) brilham pelo apaziguamento. Putin e Xi Jiping visitam-se. O chanceler e o empresariado alemães lutam por negócios, no Oriente Médio e China. O presidente Biden e seus enviados especiais (Ucrânia e China) trocam ideias e farpas. “Davos de verão” na China: empresários e experts em finanças. A Índia de Modi, que visita os Estados Unidos, barganha armas. Até a Cuba silenciosa (ou silenciada) faz o impensável: envia seu ministro da Defesa a Moscou. Para conversar o quê? Nesse contexto, contribui o Brasil com um incansável presidente Lula em campanha pela paz, por onde quer que vá. Globo afora, conversas por telefone e videoconferências mostram como a tecnologia acompanha o espetáculo. Do qual o principal ator e robô ainda é o presidente Zelensky, hors concours como globe-trotter, embora a paz escape a seus objetivos.

Não basta. No arcabouço plural da multipolaridade vingam os negócios. O 11 de Setembro fez emergir a Ásia Central. Aproveitou-se a China para avanços a longo prazo: em energia, comércio e comunicações, até a parceria estratégica com a Rússia. A briga pela energia do Cáspio gerou rivalidades entre o Irã, Turquia, Paquistão, Índia e China, nessa região que viveu sob o cordão de isolamento dos impérios russo e soviético por 150 anos. Agora começam os acertos, a partir mesmo da amizade (feita por Pequim) Irã-Arábia Saudita. Em junho, reunião de cúpula econômica levou à mesa chineses e representantes das cinco repúblicas caspianas. Assoma Xinjiang. Essa importantíssima província chinesa, rica em recursos energéticos, integra-se ao momento como “parte” da Ásia Central, da qual é mais próxima, étnica e culturalmente. Ainda a lembrar: a proposta Iniciativa Cinturão e Rota aconteceu no Cazaquistão, 2013, e foi lançada dois anos depois. O país é a conexão mais importante do elemento ‘cinturão’; tem tudo e o céu também…

Sucedem-se, paralelamente, foros econômicos anuais. Com o de St. Petersburg (fins de junho), seguido de outro, estritamente africano, selando – por assim dizer – a parceria Rússia-África. (Talvez não seja mera coincidência o desmantelamento do Grupo Wagner, atuante nas guerras africanas). Vínculos que se estreitam para turbinar projetos de conectividade e acelerar a desdolarização nas Rotas. O ministro da Integração e Macroenonomia da Rússia, Sergey Glazyev, dita: é preciso convencer os bancos refratários a abandonar o dólar. Em xeque as transações entre os Brics, os Brics plus (a fila de candidatos cresce, à frente uma Arábia Saudita sôfrega), a Organização para a Cooperação de Xangai, a União Euroasiática, o Sudeste asiático. Trata-se de criar sistemas de pagamentos alternativos ao Swift, em moeda local. Mas ainda há muito dólar no mundo, de vida prolongada, como moeda de reserva que é.

Temas variados. Quanto aos encontros Ocidente, como o do G7 em Hiroshima, a agenda prende-se praticamente à guerra na Ucrânia. O mesmo na cúpula da Otan (julho, nos Bálticos), em pauta o conceito estratégico de coesão, pois há dissenções internas. E até mesmo na China – reunião de Xi Jinping com estrategistas militares (o Teatro de Operações), seguindo o ritual de preparativos para situações de guerra. Em Paris, uma cúpula mais “diversificada”, convocada pelo presidente Macron, com o objetivo de projeção geopolítica da França, em que pese a atual crise social. Presentes chefes de Estado europeus e africanos e o presidente Lula (crítico das instituições financeiras), presentes as questões que envolvem os agronegócios, por conta dos devastadores agrotóxicos na geração de doenças, presente o Mercosul. E presente a questão ideológica no XXVI Foro de São Paulo, reunido em Brasília para debater a integração regional do ponto de vista da soberania, tantos são os dela espoliados. De fato, uma retomada das lutas sociais, para criar uma “trincheira” contra a extrema direita.

Apenas o presente. Algo certamente terá escapado neste listar de iniciativas, tentativas de diálogo, choque de ideias, tensões enfim. Um período grave nas relações internacionais. Os fatos correm a uma velocidade inalcançável, e tão mais complexos porquanto ainda envolvem problemas com os idiomas falados e as respectivas traduções. Arrisco evocar o pensamento de Jorge Luís Borges sobre o enigma do tempo e seus paradoxos. Um deles apega-se à ideia de que nenhuma das dimensões do tempo parece implicar a “realidade”. O futuro ainda não existe, o passado deixou de existir. Só existe o presente. Mas, cunhado entre os dois, reduz-se a um ponto impossível de agarrar, porque em movimento perpétuo. E, tal como os primeiros pensadores gregos, perplexos diante da evidência de mudança, assim estão o Império americano e seus seguidores.

Diferentemente, digo eu, dos que se alinham aos polos em nascimento, perplexos ante a própria audácia. Porque vem resposta por aí, seja a costumeira desestabilização interna nos países visados, seja a angustiante ameaça nuclear.