O tema deste artigo está estreitamente ligado a um dos pontos já tratados em nosso texto da edição anterior de A Razão. Referimo-nos à afirmação de Platão segundo a qual a alma compõe-se de três partes: a da concupiscência, sede dos desejos, dos apetites e das paixões; a irascível, sede da raiva contra tudo que ameace a vida, responsável, portanto, pela sobrevivência do ser humano; e a inteligível ou racional, sede da razão, que conduz à sabedoria.
Feito esse preâmbulo, vamos ao assunto do presente artigo.
O homem pode, pelo uso da parte racional da alma, chegar ao conhecimento que o torna um ser virtuoso e, portanto, ético, doutrina o filósofo. Sem virtude não existe ética. Assim, só o ser humano virtuoso pode praticar o bem, entendendo-se por virtuoso aquele que é capaz de controlar, também por meio da parte racional, as outras duas – a da raiva e a da concupiscência. Controle esse que dispõe a pessoa à prática do bem.
Predomínio da razão
Há duas justificativas para essa necessidade de predominância da parte racional.
A primeira é a de que os desejos, apetites e paixões, por despertarem os impulsos violentos do corpo, cegam a razão, tornando-a incapaz de conhecer a virtude e distingui-la do vício.
A segunda é a de que o melhor e o superior devem (conforme o conceito de justiça de Platão) comandar o pior e o inferior; como a razão é superior aos demais elementos da alma – o colérico e o concupiscente (dos desejos, apetites e paixões) –, cumpre a ela comandá-los.
A parte racional age diretamente sobre a irascível e indiretamente sobre a concupiscente. Ou seja, faz com que a da raiva saiba o que é bom ou mau para o corpo, a fim de que, de posse desse conhecimento, possa, por sua vez, conduzir a da concupiscência, que lhe é inferior, a também saber o que é bom ou mau para o corpo.
Se virtuoso é quem consegue harmonizar todas as partes da alma, pessoa alguma poderá agir virtuosamente enquanto não estabeleça em si essa harmonia. Atinge esse equilíbrio espiritual aquele que, procedendo em consonância com os princípios da justiça, não consinta que nenhum dos elementos da alma se dedique a tarefas alheias ou que eles interfiram uns nos outros.
Participação na vida coletiva
Na sociedade sonhada por Platão, a plena participação na vida coletiva não pode ser exercida pelo homem sem que antes ponha a “casa” em ordem, ou seja, enquanto não tome uma série de providências ou realize certos objetivos na vida, conforme preconiza o filósofo no final deste artigo.
Se a plena participação do homem na vida coletiva depende de que faça e ou realize as coisas preconizadas por Platão, não se conclua, porém, que ele (o homem) deva empenhar-se nisso sozinho, isoladamente, esperando atuar comunitariamente só depois de poder fazê-lo de maneira plena. Nada disso, esclarece a professora de filosofia Bernadete Siqueira Abrão. O filósofo, de modo algum, diz ela, sugere tal ideia, mesmo porque sabe que a moderação dos apetites, dos desejos e das paixões não se realiza senão na vida comunitária, seja no seio da família, na vizinhança, na cidade, enfim onde quer que o indivíduo viva, onde quer que atue, onde quer que esteja, aonde quer que vá. Vale dizer que não é possível existir vida ética a não ser dentro da comunidade, no relacionamento entre os cidadãos.
Essa noção, observa a professora, conduz à conclusão de que a ética pública é superior à ética particular, de cada um, e que entender esse conceito fundamental é a chave para compreender Platão quando ele fala sobre política e sobre Estado.
Transcrevemos a seguir breve e oportuno trecho atinente ao assunto em causa, colhido no diálogo A república, de Platão, fechando assim com chave de ouro este artigo:
“Depois de pôr sua casa em ordem, no verdadeiro sentido, isto é, de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de si mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes, exatamente como se fossem três termos numa proporção musical, o mais alto, o intermédio e o mais baixo, e outros quaisquer que acaso existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os, de muitos que eram, uma perfeita unidade, temperante e harmoniosa –, só então se ocupe o indivíduo (se é que se ocupa) ou da aquisição de riquezas, ou dos cuidados com o corpo, ou da política, ou de contratos particulares, mantendo a vigilância e o comando da razão em todos esses casos.
Assim, poderá considerar justa e bela a ação que mantenha e aperfeiçoe esses hábitos e chamar de sabedoria à ciência que preside tão meritória ação.”