Quanto tempo mais?

Livro recente, de maio. ‘O capitalismo explicado à minha neta – esperando que ela testemunhe seu fim’, edições du Seuil, é visto como um diálogo sutil e engajado com uma adolescente. Um primor, tal como o precedente ‘A fome no mundo explicada a meu filho’ (Vozes, 2002). Duas obras que traduzem a proposta de Jean Ziegler – “suíço insubmisso” ou “um rebelde”, segundo fervorosos seguidores ou biógrafos: o capitalismo tem de ser destruído. Nem reformar, nem melhorar: “Não há capitalismo de face humana, tal como todos os outros sistemas de opressão”. Duas obras que se querem “uma arma para a insurreição das consciências”, palavras do autor. Frente às duas armas de destruição maciça: a dívida e a fome. “Pelo endividamento, os Estados abdicam de sua soberania; pela fome que daí resulta, os povos agonizam e renunciam à liberdade”.

Jean Ziegler, sociólogo, político, atualmente ocupa a vice-presidência do Comitê Consultor dos Direitos do Homem da ONU. Bibliografia vasta lastreia uma vida dedicada a desbravar e desvendar, aprender e explicar, criticar e sugerir, ensinar e provocar.  Também incitar. Foi o único deputado suíço “excomungado” do Parlamento da Confederação Helvética por causa do ferino ‘A Suíça lava mais branco’. Em seu favor, ‘A felicidade de ser suíço’ e ‘A Suíça acima de qualquer suspeita’. Com traduções em português, inglês, espanhol, alemão e pelo menos dois relatos biográficos (‘Jean Ziegler’, de Jesse Russell e Ronald Cohn, e ‘Jean Ziegler: la vie d’un rebelle’, de Jürg Wegelin), soma à sua prolífica verve o combate ao capitalismo, além de atiçar o tema da geopolítica da fome.

Em junho, recém-lançado ‘O capitalismo explicado à minha neta’, Pascal Boniface lhe propõe três indagações, em entrevista ao Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas da França, IRIS. Primeiro, o porquê da crítica ao capitalismo, embora reconhecendo-lhe eficácia para o desenvolvimento econômico. Segundo, por que deve ser destruído? Por fim, será que a “sociedade civil planetária”, na qual repousa suas esperanças, basta para derrubá-lo?

De pronto, Jean Ziegler ressalta o paradoxo. O modo de produção capitalista é, a um só tempo, o mais dinâmico, inventivo, criativo, mas “as extraordinárias riquezas criadas foram monopolizadas por uma oligarquia medíocre”. Por exemplo, as 500 mais poderosas sociedades transcontinentais privadas detinham o controle, em 2017, de 52,8% do Produto Mundial Bruto. Só resta destruir o sistema, tal como, em 1789, os revolucionários destruíram o feudalismo. Contudo, ninguém sabe ainda como se produzirá a “insurreição das consciências”, que augura próxima. “A encarnação é um mistério; como, em quais circunstâncias históricas, uma ideia se torna em força social”? Parece chegada a vez da “sociedade civil planetária”, ora com fissuras que se multiplicam em seus “muros de opressão”, provocando o despertar. Essa nova sociedade civil, para Ziegler, é a nova razão da História, a esperança dos povos.

O diálogo começa em casa. Uma conversa, na primavera de 2000, quando da terrível fome na Somália. O filho Karim cisma: “Não consigo entender como é possível que, no início do novo milênio e num planeta tão rico, tantos seres humanos continuam morrendo de fome”. O pai sofisma páginas afora. São respostas citando conferências, refugiados, a destruição da Amazônia, clima e catástrofes naturais, chantagens como forma de pressão, as secas, epidemias, a concentração de renda, guerras, a arma alimentar pelo bloqueio e sanções, e ah! – a África. Enfim, o martírio cotidiano da fome e o absurdo da injustiça social. No prefácio, a socióloga Anna Maria de Castro, filha de Josué de Castro, cita o próprio aprendizado: ”Josué afirmava que a fome sempre existiu”.

O diálogo continua agora. Zohra, a neta, transforma-se em aprendiz de feiticeiro, curiosa com os bons e os maus do capitalismo, como este nasceu e cresceu: “É preciso, pura e simplesmente, abolir o capitalismo”? Mas vovô Jean, ou Jean, como ela o chama, vai longe e ressuscita Karl Marx (estudo um tanto negligenciado na escola suíça), o feudalismo, as mudanças sociais nos séculos XII e XI. Estimulante e simples. “…A palavra capitalismo evoca duas características fundamentais: o “capital” como massa de dinheiro, o “capitalista” como agente operacional ou ator social, que enriquece às custas dos trabalhadores”… 

Um bom momento, portanto, para evocar os “cosmocratas” da dívida e da fome; a utopia e a esperança. “A nova revolução está em marcha: insurreições das consciências aqui, insurreições da fome acolá. Só ela pode conduzir à refundação do direito à felicidade, uma velha questão do século XVIII”. 

Sossegue, Jean Ziegler. Talvez não a neta, mas bisnetos ou seus descendentes passem de discípulos a mestres, e venham a escrever a obra perene que tarda: ‘O fim do capitalismo explicado aos meus e a todos’. Você assistirá à revolução consumada, de outras esferas astrais, conforme a filosofia da encarnação que, então, já não lhe pesará mais como um mistério.