A América Latina continua a surpreender com o insólito, bizarro, excêntrico. Venezuela e Brasil nos ocupam nestas acanhadas linhas que não chegam ao Caribe. Um país, há anos, com dois presidentes (Venezuela); um país (Brasil) com campanha presidencial inflamada por um cidadão norte-americano, em simpósio público de trumpistas. Inaudito. Populismo e militarização política comandam este espetáculo, tragicômico, de efeitos negativos. Alguns já chamam a região “a terra das democracias militarizadas”.
Longe parece a (re)tomada democrática bem-vinda. Na Venezuela prevalece a fusão de funções, considerada um tática autoritária. Postos passam às forças armadas em instituições tradicionalmente reservadas aos civis. A influência militar aumenta, “se membros do oficialato assumem posições de autoridade em estruturas de poder não militares”, lembra Samuel Huntington, em obra sobre as relações civis-militares. Já é fato inconteste no Brasil. Há um ano (agosto 2020), 39,1% de militares ocupavam postos no gabinete presidencial. Somam uns seis mil. Nem o fracasso da guerra (militarizada) às drogas, no final dos anos 1990, nem a modernização armamentista concedida às forças armadas brasileiras, na primeira década de 2000, afastaram os militares da política. Em ambos os países (mais o Chile), longe de se completar o controle civil, este vai perdendo mais e mais terreno.
Quando começa o retrocesso? Os cientistas políticos Octávio Amorim Neto e Igor Acácio (autores vinculados, como professor e pesquisador, à Fundação Getúlio Vargas) apresentam um marco, em janeiro de 2019. Apõem uma ressalva: diferente de 1964, o retorno dos militares a vários escalões do Executivo faz-se a convite de um líder democraticamente eleito. Apesar de “arriscado” (para a imagem das forças armadas), aceitam. Sentem-se imbuídos de uma missão ideacional: guardiães da nação. O salvacionismo. Ora, se o que vivemos é o salvacionismo, imagine-se a perdição. Mas é motivo para intervir na política, ao longo do século XX, “resolvendo” os momentos de instabilidade. Contribui a (ainda) histeria anticomunista despertada nas mentes dinossaurianas, mercê da relativa “falta de ameaça externa e uma alta percepção de ameaças internas”.
Entre as vozes de dissenção, a análise de Amorim Neto e Acácio (Journal of Democracy em português, novembro 2020) cita o general da reserva Francisco Mamede Brito Filho. Seu pensamento: “Um militar da ativa que integra o governo dizendo-se cumprindo uma missão encerra uma mensagem institucional flagrantemente distorcida”. Rezam as democracias: controle civil sobre os militares; militares com poder político restrito à defesa nacional, sua área de atuação. Ou seja, peça-chave na consolidação de qualquer democracia. Um tanto sob fricção, essas relações geraram o armamentismo na região, nos últimos anos do século XX. Mas, explica Adam Isacson (ex-diretor de um programa de segurança regional, com sede em Washington), tudo não passou de uma onda de compras adiadas pela desmilitarização em curso nos anos 1980 e 1990.
Militarização. Hoje, o Brasil acusa três retrocessos no processo democrático, segundo Amorim Neto e Acácio. Primeiro, a alta presença de militares no governo. Favorece golpes de Estado, quanto mais acirrado for o debate sobre intervenção das forças armadas (segundo ponto) nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal. Mais tensões recentes no sistema internacional, com respingos no entorno estratégico brasileiro. Sem consenso social e político, fica difícil canalizar recursos para os projetos das forças armadas. Mais um ponto negativo. Como saída, sugerem os autores inviabilizar o retrocesso pela via legislativa, constitucional, pela ação do Congresso e lideranças partidárias.
A militarização registra dois fracassos, flagrantes e atuais: na guerra ao narcotráfico (iniciativa dos Estados Unidos) e na política venezuelana autocrática. Segundo o autor Peter Zirnite, a estratégia, agressiva e violenta, para conter o fluxo na fonte, levou a droga além Américas. Com custo alto aos direitos humanos. Uma estratégia, argumenta, pobre no entendimento do princípio de Clausewitz de atacar o inimigo em seu “centro de gravidade” – consumo. O “inimigo” real foi subestimado – o mercado (econômico) da droga.
A geopolítica global continua a acelerar o ritmo da mudança pós-pandemia (eu diria com a pandemia). Uma conjuntura mais para civil que militar. Exemplo recente está na aprovação – bipartidária – pelos Estados Unidos, do maior pacote de infraestrutura em um século: US$1 trilhão. Gerar empregos. E, claro, consumo. Consistente com a estratégia do Foro Econômico Mundial para fechar o fosso de financiamento (deve crescer de US$ 500 bilhões por ano, até 2040, para US$ 800 bilhões), via projetos público-privados, com destaque para o setor de construção. Foco: alocação de recursos ao que é adequado, cuidado com a corrupção e a falta de capacitação técnica, sobretudo no setor público. A América Latina já está sob as lentes da iniciativa Erigir Fundações de Confiança e Integridade.
Nenhum governo governa sem o apoio de suas forças armadas ao projeto social do país. Nenhum governo governa sem apoiar a economia da caserna. Cada roca com seu fuso, cada qual com o seu uso.