Ter ou ser, eis a questão
Se a preocupação está em ter, ter e ter, uma pessoa cada vez se preocupará menos em ser, ser e ser. José de Sousa Saramago
Erich Fromm (1900 – 1980) foi um notável psicanalista, filósofo e sociólogo alemão que escreveu e publicou mais de uma dezena de livros, entre os quais destacamos o livro intitulado Ter ou Ser (1976), título que usamos para este nosso tema. Nesse livro, ele previu que estava em curso uma mudança fundamental no nosso modo de existir e viver, embora as alterações dos valores culturais estejam acontecendo muito lentamente e com certo atraso e, nem de longe, caminham pari passu com a evolução tecnológica de nosso tempo. Este descompasso caracteriza muito bem as diferenças entre o “modo ter” e o “modo ser” de viver.
Nossa sociedade industrial está doente, muito doente mesmo, por ter levado a humanidade ao “modo ter” de viver, em que predominam o egoísmo, na forma de status socioeconômico, e a destruição continuada do meio ambiente, em dissonância completa com os valores éticos do homem. Por isso, temos que nos adaptar às mudanças que nós mesmos provocamos, ou seja, somos os causadores de tudo de ruim que vem acontecendo em nosso planeta.
Convém destacar, por ser importante, que a Revolução Industrial ocorrida a partir do século XVIII sofreu e vem sofrendo mudanças radicais, a ponto de o comportamento eminentemente econômico das empresas se ter separado dos valores morais e éticos do homem. E, para embasar as atividades econômicas, foram criadas as assim chamadas “pessoas jurídicas”, que possuem mais valor material do que a pessoa física. Elas, as empresas jurídicas, passaram a constituir unidades autônomas, cujo fim primeiro é a obtenção de lucro. Daí as pessoas jurídicas possuírem necessidades próprias, seguindo os estatutos que as criaram, independentemente das necessidades humanas. Há aqui, pelo sentido econômico das empresas, um incentivo ao consumismo, que leva o homem a procurar valorizar o seu status socioeconômico estabelecido pelo sistema vigente, ao invés dos valores éticos próprios de uma sociedade mais simples, menos patogênica e mais sadia. Por isso mesmo, fica claro que precisamos introduzir mudanças urgentes para atender às necessidades psicológicas do homem e para proteger o meio ambiente.
Vivemos em uma sociedade que tem por princípios a propriedade, o lucro e a aquisição desenfreada de bens, o que leva a um caráter social voltado para o “modo ter”, a ponto de criar, como de fato criado está, um sistema desigual e injusto de distribuição da riqueza material do planeta, estabelecido por este padrão dominante. Em consequência desse status quo, de egoísmo, cobiça e interesses sem limites dos mais afortunados, os apelos de humanistas e idealistas para estabelecer uma sociedade mais igualitária e solidária com caráter social voltado para o “modo ser” de viver inapelavelmente vem fracassando ao longo dos anos.
Já faz parte do sistema econômico vigente a cultura do consumismo desenfreado pela aquisição de coisas e utensílios, carros de luxo, casas, chácaras e sítios, apartamentos, viagens de férias frequentes ao exterior, que constituem a matriz necessária para definir o status social, ou seja, a felicidade de alguém. É o que pensa a maior parte da humanidade em todos os países. Ou seja, o consumismo apoderou-se de todas as sociedades. Nesse modo “ter” de viver o ser humano compra por impulso, mas também, em muitos casos, por cobiça. O que está por trás de tudo isso? Podemos invocar como resposta a vontade de se exibir, de ostentação e de se mostrar superior aos seus semelhantes. Mas os que assim procedem, no fundo, no fundo, acalentam uma falsa felicidade, aquela que está embasada pelo modo “ter” de ser e não pelo modo “ser” de ter. Devemos buscar o equilíbrio, porém com preponderância para o modo “ser”.
Não estamos aqui condenando o desenvolvimento da tecnologia, que deu saltos à frente inimagináveis nos últimos 30 anos de nossa história em benefício da humanidade, principalmente com a forma simples e fácil de nos comunicarmos com quem desejarmos em qualquer parte do planeta, instantaneamente, graças à difusão dos satélites, da internet e dos telefones celulares, mas a colocação em primeiro plano da simplicidade no viver.
Vemos aqui, comparando a situação atual com o século XIX e primeira metade do século XX, um quase completo afastamento dos valores espirituais e morais do ser humano que se contentava com a simplicidade no viver. Já foi época em que a família era a base da sociedade; hoje, a base é o capitalismo e o dinheiro fala mais alto, tendo por motivação principal realizar-se financeiramente. Daí, tanto egoísmo, tanto egocentrismo e tanta inveja, sentimentos estes que tornam este planeta refém dos poderosos do capitalismo selvagem e desenfreado, deixando tantos seres humanos à mingua e até morrendo de fome, vítimas de doenças incuráveis causadas pela subnutrição.
Esse desejo de “ter”, que a maioria dos indivíduos não consegue subjugar pela vontade educada e firme, é a mola-mestra que movimenta os mercados do mundo inteiro, inclusive dos bens financeiros (bolsas de valores), constituindo a pedra fundamental do consumismo compulsivo. Aqui, mesmo não tendo dinheiro disponível, o ser humano lança mão dos cartões de crédito a juros altíssimos e compra tudo o que lhe “dá na telha”, sem medir as consequências dolorosas dessa prática que leva as pessoas a se endividarem, entrando num beco sem saída. Então, assim encalacradas, muitas famílias que se formaram a duras penas acabam arruinando-se. Essa calamidade de gastar o que no presente não pode leva esses consumidores a se tornarem viciados, pois, para pagar uma dívida, fazem outra em outro banco que lhes ofereça crédito fácil. Ao final, quando se dão conta das armadilhas em que caíram rodeados de dívidas, sofrem angústias profundas e levam anos para voltar a se equilibrar, o que nem sempre acontece com todos. E se nesse caminhar perdem seus empregos, seu mundo desaba, entram num beco sem saída, muitas vezes levando à quebra dos laços familiares, ou então, o que é mais grave ainda, perdem suas personalidades caindo no mundo das drogas e do crime. Este é quadro negativo que se nos depara no modo “ter” de viver.
Bem diferente desse quadro é o modo “ser” de viver, onde os atributos do espírito e seus valores norteiam o fluxo de nossas vidas em todos os sentidos, valorizando o caráter, a dignidade, o respeito, a confiança, os sentimentos e, bem assim, as nossas mais nobres emoções, realçadas pelo amor fraternal e desinteressado, que gera a empatia, a solidariedade e a compaixão pelas pessoas necessitadas de ajuda e amparo espiritual.
É nessa linha de atuação que o Racionalismo Cristão se colocou, como doutrina espiritualista, nos ensinamentos e divulgação de seus princípios doutrinários há 107 anos, desde que foi codificado pelos nossos mestres Luiz de Mattos e Luiz Thomaz.
Caruso Samel
Escritor, militante da Filial Butantã (SP)