“A Casa Branca tornou-se a casa de Trump”. Cientista política, autora (Brown University), Bonnie Honig assim analisa a Convenção Republicana 2020, na Ala Sul da Casa Branca, edifício público, onde se entrincheirou o presidente. Trump em seu lar – é como ele se sente. Simbólicos o isolacionismo, a unilateralidade. Mas se deu certo, repita. A Convenção Republicana, cognominada Convenção de Trump, repete 2016: a família toma conta do evento e do partido. Também sem novidade, mantém o mote “América Primeiro”. Ressalta as figuras tradicionais republicanas – apelo à base, fiel, sólida, quase invariável, pouco mais de 30% do corpo eleitoral americano. Oradores pela glória do presidente, o culto da personalidade.
Quatro dias pouco convencionais. Formato inédito, virtual. Mensagem de esperança. A Convenção Democrata lança, por Kamala Harris, o apelo: “para o povo”. O povo precisa de representação. Em quatro tardes temáticas, o democrata americano mostra a diversidade cultural e racial do país, a história de quatro cantos, antes e agora. E o pensamento de volta à normalidade – melhor que antes e agora. Erigir sobre o modelo americano um país melhor. A pluralidade em marcha. A luz depois de quatro anos de sombra.
Pesquisas de opinião, dois meses antes destas eleições, apresentam o que mais conta para o eleitor: a 79% preocupam os acordos econômicos, a 68% a assistência à saúde, a 57% a política externa, a 52% a imigração, a 42% a mudança climática.
Em amplo estudo divulgado em agosto, quando das Convenções, o Pew Research Center, não partidário, confirma a liderança de Joseph Biden por nove pontos percentuais, apesar da vantagem de Donald Trump em sua base. Em resumo: há uma crise de confiança no governo federal; a metade do eleitorado julga difícil votar por causa das restrições oriundas da pandemia; o governo atual só tem boa imagem quando se trata de combater o terrorismo – até os democratas concordam –, mas negativa na forma de lidar com assistência à saúde, meio ambiente, pobreza, imigração. Nestes quatro itens, é flagrante a cisão. Desde 2016, agrava-se um sentimento geral de raiva (24%), frustração (57%) ou contentamento (18%). Até os republicanos acham que o governo devia fazer mais.
Não apenas as pesquisas, mas livros editados desde o badalado Fire and Fury, de Michael Wolff, traçam um retrato nada lisonjeiro de Trump. Há o de Mary Trump, a sobrinha (Too Much and Never Enough), que ela diz ter escrito “para evitar outro 2016”. Se houver um segundo mandato, ”será o fim da democracia americana”. Mais Fear, do consagrado jornalista Bob Woodward (quem se lembra de Watergate e a renúncia de Nixon, em 1974?). Deve-se o título do livro à propalada e insana preocupação do círculo interno da Casa Branca no controlar dos impulsos de Trump e, assim, evitar o mal maior. E, em setembro passado, eleições à porta, é ainda Woodward quem reforça a carga com nova obra, Rage, ou de como um presidente lida com a pandemia, agitação racial e economia em desgraça. Também a destacar: Unhinged, do ex-assessor Omarosa Manigault, uma chicotada na “falta de interesse e conhecimento” do presidente em assuntos importantes. Nada de novo, professa a maioria das resenhas aos livros. Apenas oportunos, com detalhes pandêmicos.
Ex-assessor de segurança nacional, John Bolton junta-se aos críticos, ao se referir à política externa de Trump, sem “qualquer base filosófica”. O que pensar, então, da questão nuclear, atualíssima pela economia geopolítica, com o Irã de pivô? Há que considerar os “envolvidos” meio ambiente e fornecimento de energia. A curto prazo, são três os tratados em xeque, que Trump decidiu, em 2018, rejeitar: o das Forças Nucleares de Alcance Intermediário, o de Não Proliferação Nuclear e o Plano Abrangente de Ação Conjunta com o Irã. Serão mantidos? Ou enfraquecidos, por desistência ou abandono de um ou mais, conforme as cláusulas?
O tom ameno contra a “histeria” reinante em relação ao Irã, de duas décadas atrás (Bruce Reidel, negociador do ex-presidente Clinton em Camp David), fez-se alerta há dez anos: se os Estados Unidos ou Israel atacarem o Irã, este se sentirá no direito de fabricar a bomba. Haverá respingos no Oriente Médio – onde o temor de corrida nuclear vem de meio século –, China e Rússia, Coreia do Norte, União Europeia, India e Paquistão.
Há tempos, Trump obstina-se na ideia de desenvolver novas instalações nucleares e expurgar o obsoleto. Já são 30 os países que consideram, planejam ou começaram programas nucleares. Mais 20 tencionam o mesmo, diz relatório de abril 2018 da Associação de Energia Nuclear. A transferência de tecnologia é irreversível. Quanto ao nuclear em uso para energia, põe em ação 447 reatores operacionais em 30 países. Desde 2000, mais 150 em construção, dos quais 85 na Ásia. Chegar à bomba tarda; é muito caro. Talvez a Arábia Saudita (rival do Irã no Oriente Médio) e com programa apoiado por Washington.
No debate sobre o clima, duas visões sobre a solução pela via nuclear, em entrevistas a Der Spiegel: a de um cientista que gostaria de ver o mundo livre dos reatores, Paul Dorfman, 64 anos, presidente do Nuclear Consulting Group, e a de outro favorável à construção de muitos mais, Staffan Qvist, 34 anos, engenheiro nuclear e autor. Dorfman precisa que as usinas, muitas em idade avançada, apresentam risco real de acidentes sérios. Fora roubo, ataques terroristas e choques da mudança climática. Qvist discorda, sob o argumento de eletricidade barata e estável, e advoga o uso híbrido de renováveis e nuclear. Por ora, um impasse de custos ralenta decisões.
Com conhecimento de causa, analistas americanos atestam que ainda não se conhece o novo presidente. Mas o eleitorado americano nos apresenta uma visão política clara. ‘América Primeiro’ é prioridade primeira do próximo presidente; diferem apenas o cunho e abordagens.
“Eleições do século”, opina Soli Özel, autor afeito às relações internacionais. É verdade; a simples disputa do ganhar e perder traduz-se em afã de, pela via legal do povo, alijar o intruso da Casa Branca.