Gandhi e o princípio da inofensibilidade
Uma rápida consulta aos dicionários disponíveis na internet nos informa que o ofensor é aquele que atinge alguém na sua honra, na sua dignidade; injúria, agravo, ultraje, afronta; ação que causa dano físico; lesão; ato de atacar; ofensiva; ato ou dito que lesa um sentimento respeitável ou legítimo; desconsideração, desacato, menosprezo; violação de um preceito, de uma regra. A ofensa é, portanto, um pensamento negativo que leva à prática de atos negativos. Ou seja, a ofensa tem duas vertentes bem distintas: a ofensa de natureza moral e a ofensa de natureza física. Nós vamos tratar neste artigo da primeira modalidade e os efeitos que causa no ofendido.
Antes, porém, devemos dizer que o Direito Penal brasileiro trata essa questão abrangendo três enfoques: calúnia (artigo 138), difamação (artigo 139) e injúria (artigo 140). Nessa mesma ordem, simplificadamente, na calúnia o ofensor acusa falsa e publicamente o ofendido de um crime (exemplo: fulano roubou o meu carro); na difamação, a pessoa ofende alguém atingindo sua reputação por supor que o ofendido tenha praticado um ato desonroso (exemplo: o professor praticou assédio sexual com uma de suas alunas); e, injúria, que é um xingamento (exemplo: a prática do bullying nas escolas). Na atualidade, as redes sociais da internet estão repletas dessas modalidades de notícias virtuais falsas (fake news), sendo difícil identificar o autor das ofensas para uma resposta judicial.
Muitas pessoas preferem “não engolir sapos” e pensam em retrucar o ofensor com a mesma moeda ou partir para a agressão ou até mesmo a retaliação, quando o ofendido não tem o equilíbrio psíquico necessário, aplicando o que ficou conhecido como a lei de talião, que consiste na rigorosa reciprocidade da ofensa ou do crime retratado na expressão “olho por olho, dente por dente”. Podemos até compreender esse tipo de situação, pois sentirmo-nos ofendidos é natural. Esse tipo de revide ou mesmo de vingança é totalmente condenável, mas não justificável para aqueles que usam o bom senso e têm o necessário equilíbrio psíquico.
Curioso é que os casos mais comuns de ofensa e revide ocorrem com os nossos familiares, amigos e colegas, isto é, com quem nos relacionamos mais de perto. Quem nunca passou por uma ofensa em que seus sentimentos tenham sido feridos por causa de palavras descabidas e impróprias faladas em uma discussão? Será que você reage instintivamente às provocações acompanhadas de palavras ásperas e duras de engolir? Será que você fica simplesmente chateado e permanece calado, remoendo a ofensa e buscando uma maneira de revidar com a mesma moeda numa outra oportunidade? Como você procederia? Estas são questões comuns num enfrentamento as quais ninguém escapa. É dessas questões que vamos tratar a seguir.
É claro que nos sentirmos feridos em nossos sentimentos, nos sentirmos indignados quando somos ofendidos é natural, mas não precisamos revidar ou nos vingar; o certo é não perdermos o controle emocional. Então, como adotar atitudes compensatórias? Para isso, não devemos alimentar atitudes destrutivas de qualquer natureza, e sim concentrar os pensamentos e as energias para apaziguar nossos sentimentos, não aceitando a ofensa de quem nos magoou. É difícil, mas não é impossível, pois punir alguém que nos magoou é muito destrutivo para manter-nos sob o controle da situação. Todo sentimento de revolta é acompanhado de um grau maior ou menor de raiva, que nos corrói por dentro, tornando-nos amargos e de mau humor. Por isso, não fique remoendo e pensando na forma de revidar qualquer agravo, por maior que seja. Não vale a pena, pois a raiva consome você. Portanto, nada de incentivar o sentimento de raiva.
Por ter sido o maior ativista da não agressão ou da não violência no mundo, faz-se necessário mencionar aqui o exemplo deixado por Mahatma Gandhi (1869 – 1948), que usou esse meio de resistência para libertar a Índia da tirania da Inglaterra e foi o inspirador de Martin Luther King Junior (1929 – 1968), nos Estados Unidos, na sua luta heroica e bem sucedida contra o racismo. Os espíritos de ambos fazem parte da plêiade do Astral Superior. Ambos inspiraram e continuam inspirando gerações nas suas reivindicações, como é o caso atual do movimento feminista no mundo pela igualdade de tratamento entre homens e mulheres em todas as atividades da vida. Sobre Gandhi, Albert Einstein escreveu que “as gerações por vir terão dificuldade em acreditar que um homem como este realmente existiu e caminhou sobre a Terra.”
Huberto Rohden (1893 – 1981), que nasceu em São Ludger (Santa Catarina) e faleceu em São Paulo, foi um filósofo, educador e teólogo. Radicado em São Paulo, deixou-nos mais de 100 obras condensadas em 65 livros publicados pela Editora Martin Claret (São Paulo) e outras de Petrópolis, Rio e Porto Alegre. Foi precursor do espiritualismo universalista, corrente de pensamento não religiosa e antimaterialista.
Pois bem, Huberto Rohden expõe em seu livro Mahatma Gandhi muitos conceitos sobre a vida, sendo o conceito da inofendibilidade lapidar de seu comportamento:
“Há três atitudes que o homem pode assumir em face de uma injustiça manifesta: 1) calar-se simplesmente, e isto é covardia; 2) revoltar-se, opondo violência contra violência, e isto é degradar-se ao nível de seu inimigo; 3) opor uma força espiritual a uma força material, e isto é suprema sabedoria, embora conhecida apenas de uns poucos sapientes e que supre uma força espiritual que pouquíssimos homens possuem.”
E, continuando: “Não fazer mal ao malfeitor é difícil. Não dizer mal dele, é dificílimo. Nem sequer pensar mal dele nem lhe querer mal, e ainda querer bem a quem nos quer e faz mal – isto é um desafio ao mais alto heroísmo espiritual que se possa imaginar.”
Afinal de contas, a ofensa atinge o nosso ego, mas não o nosso eu espiritual, matéria abordada em nosso artigo publicado em A Razão de janeiro/2018 sob o título Os nossos dois eus. É o nosso ego ou eu relacional que se sente ofendido de tal maneira que pode tornar-se crônico, verdadeira doença que atinge as pessoas menos espiritualizadas. Nesse sentido, o Mahatma Gandhi afirmava que isto era um dos maiores males da humanidade, pois “quanto mais ego somos mais ofendidos nos sentimos, e todo ofendido está no mesmo grau do ofensor!”
Esses princípios, inerentes ao modo de pensar e sentir do Mahatma Gandhi, levaram-no a conseguir um elevado grau de inofendibilidade ou inofensibilidade, já que ele se comportava muito além do seu ego humano por ter praticado o seu “eu espiritual”, que, em última instância, é inofendível. O Mahatma ensinava e afirmava que, quando atingimos a consciência do eu espiritual, ultrapassamos a horizontalidade do ego. Nesse sentido, não existem ofensas, pois estaremos além da vingança e do perdão. Por tudo isso, ele não precisava vingar nem perdoar ninguém por nunca se sentir ofendido. Concluindo: Com este princípio, Gandhi nos legou uma magnífica lição de vida.
Caruso Samel
Escritor, militante da Filial Butantã (SP)