A lapidação do caráter

Impõe-se grande cautela ao tratar de uma questão tão complexa e delicada como a do caráter. Com certeza, é a própria pesquisa filosófico-espiritualista que nos convida a refletir sobre esse conceito e a questioná-lo com a intensa interpelação que lhe é peculiar. 

O vocábulo “caráter” vem do grego “charactér” e significa “marca, sinal gravado”. Em sentido mais abrangente, representa um princípio que marca de maneira indelével a dignidade pessoal e eleva consideravelmente o convívio entre as pessoas. A análise à luz da espiritualidade proposta pelo Racionalismo Cristão nos fornece uma importante chave de interpretação sobre o caráter: permite-nos percebê-lo como o somatório de valores transcendentes que se aprimoram por meio das relações entre indivíduos e coletividades. 

O principal propósito dessa reflexão é fornecer subsídios para que o estudioso da espiritualidade desenvolva uma visão mais ampliada do conceito de caráter, fundada tanto na importância do desenvolvimento de hábitos sadios e no consequente aprimoramento da própria personalidade quanto no valor da atitude, exteriorizada em gestos probos, honestos e íntegros. Dessa maneira, será possível conciliar as demandas da vida prática com os elevados preceitos da espiritualidade, sem negar a objetividade da realidade física ou a subjetividade do ser humano, que deve buscar incessantemente seu aperfeiçoamento moral e o desenvolvimento harmônico de seus atributos. 

Não é necessária uma capacidade de observação extraordinária ou uma acuidade especial para perceber dentre os seres humanos, não obstante sua essência em comum, notas peculiares e traços distintivos, que se tornam ainda mais evidentes quando analisados sob o aspecto da ética e da moral.  

Logo, o traço singular que distingue sobremaneira os seres humanos, ou seja, a marca moral que os personifica é, precisamente, o caráter. Em todas as culturas e povos, aqueles que se destacam positivamente, atraindo o respeito e a admiração dos demais por nutrir aspirações nobres e desinteressadas, por demonstrar sinceridade de propósitos, generosidade, tenacidade, sensibilidade e coragem estampam um belo caráter; disso ninguém duvidará. 

Por outro lado, quando a pessoa manifesta vileza, instintos grosseiros e desordenados, indiferença em relação ao sofrimento alheio, desprezo pelas disciplinas construtivas da vida e pela palavra empenhada, concluímos que possui um caráter incipiente e precário, embora reúna em si, de forma latente, os instrumentos para a lapidação de um caráter virtuoso.  

O que representa, então, propriamente o caráter? O desenvolvimento coordenado, concomitante e harmônico dos atributos do espírito. Assim, para que possamos aprimorar nosso caráter, tornando-o mais vigoroso e pujante, necessário se torna um esforço consciente para desenvolvermos em nós, equilibrada e proporcionalmente, o maior número possível de atributos. Temos de despertar, diga-se já, no que concerne aos atributos, uma visão de conjunto, de união – é aí que reside verdadeiramente o conceito de caráter na ótica do Racionalismo Cristão. 

Destas considerações, depreende-se que o robustecimento do caráter não se alcança por intermédio de um estado de mera passividade, mas pelo contrário: adquire-se mediante uma atividade do espírito suscitada pela razão e movida pela força de vontade, ao mesmo tempo que implica um desprendimento paulatino das sensações mais primitivas e o consequente mergulho no sutil oceano da espiritualidade. 

Sem dúvida, é necessário reconhecer que, por muito dificultoso que seja o empenho para o desenvolvimento ordenado dos atributos espirituais, não se exclui dessa trajetória um sentimento de profunda alegria. É verdade: se, por um lado, o processo de crescimento espiritual é por vezes doloroso (qual é o crescimento que não importa em dor?), por outro lado, a felicidade oriunda desse processo excede toda alegria provisória e efêmera que a materialidade não cessa de oferecer e cujas consequências são tão danosas quanto imprevisíveis. 

O ser humano que, com sinceridade de propósitos e sem preconceitos tolos, procura compreender a vida em seu aspecto mais amplo, buscando conhecer a fundamental realidade que se oculta para além das aparências, dos condicionalismos e das trivialidades, tem apreço pelo conhecimento e pela sabedoria, não apenas o conhecimento sensorial, mas também – e sobretudo – o conhecimento da espiritualidade, daquilo que há de comum em todos os seres. É precisamente esse conhecimento que lhe permitirá tirar proveito de seus erros e enrijecer seu caráter. 

Analisando agora as dimensões mais notórias do caráter, podemos afirmar que um ser que possui um caráter plenamente bom é aquele no qual as virtudes e inspirações sãs alcançaram primazia e subsidiam todas as suas decisões, de modo que ele nada teme, visto que está revestido de paciência e tenacidade. Em sentido contrário, a pessoa de fraco caráter é dirigida por suas tendências malsãs e, não raro, pela impulsiva vaidade que a distingue. Suas decisões oscilam ao sabor das circunstâncias ou de seus interesses mesquinhos, devastando amiúde, a médio ou longo prazo, seu equilíbrio emocional e psíquico. 

A chave para a avaliação do valor contido nos gestos comuns e correntes tendo por foco o aprimoramento do próprio caráter não é um mistério a ser desvendado, nem um conhecimento que possa ser adquirido exclusivamente por meio do estudo teórico. Ela está, antes, na disposição prática e concreta em reconhecer a importância da boa condução dos atributos do espírito. Assim, a inteligência, o raciocínio e a criatividade, dentre outros atributos, expandem-se, consolidando o caráter quando utilizadas em benefício do gênero humano. 

Para a pessoa de bom caráter, importa aceitar e acolher as eventuais ingratidões, as circunstâncias desagradáveis, as contrariedades e obstáculos, absorvendo sempre as lições ali contidas com a vontade férrea de tornar-se um ser humano melhor, mais humano, mais preocupado com o bem-estar de seus semelhantes e, sobretudo, com o bom uso que faz de seu tempo e de suas aptidões. 

O sentido da vida, na perspectiva do racionalista cristão, consiste na adequação dos atos humanos às leis evolutivas que se encontram na consciência de cada um. Tal adequação permita ao ser humano elevar-se mais por meio de seus pensamentos e atos, aproximando-o, por conseguinte, da vida por excelência, ou seja, da Inteligência Universal. 

Ora, amigos, essa lúcida consciência exprime uma faceta do caráter: ela só existe no ser humano que tomou posse de si mesmo, que tem autodomínio, que tem atos de sobriedade, que se sente responsável por sua conduta. A pessoa que não controla suas emoções e pensamentos, ainda que possa estar na plenitude de suas forças físicas, é fraca espiritualmente. Com certeza, não são as circunstâncias ou as condições pessoais que nos tornam plenos e realizados, mas o vigor de nosso caráter. 

Nos complexos e tumultuados dias em que vivemos, onde abundam tantas personalidades inconstantes e de temperamento flutuante, tantas vontades pusilânimes e indecisas, são condições primordiais para a edificação de uma vida produtiva e feliz a aquisição e a manutenção de ideias nítidas e propósitos firmes. 

No transcurso de nossa reflexão, definimos e desenhamos o caráter em seus mais abrangentes contornos. Cumpre-nos agora praticar os conceitos virtuosos que nos foram apresentados. Não concordamos que este seja um ideal irrealizável por ser tão sublime e elevado, porquanto o nosso dever neste planeta não consiste na realização de atos perfeitos, mas no esforço diário de autossuperação. 

Não se aleguem como impeditivo do burilamento do caráter eventuais enfermidades ou limitações físicas, pois não há quem não possa contribuir para a elevação da dignidade humana – um pensamento que seja, quando penetrado de amor ao próximo, possui tão destacada eficiência que poderá iluminar suavemente a senda da virtude, favorecendo substancialmente os que nela caminham.  

A retidão de caráter, a força de vontade, a atitude digna e elevada são valores primordiais que se impõem a todas as culturas, idades e condições sociais. O bom caráter é fruto da perseverança; e não faz senão manifestar a lapidação dos elementos que configuram espiritualmente todos os seres humanos, nos ensina o Racionalismo Cristão. 

Muito Obrigado!