A luz visível e o desabafo de um cego
De todos os nossos sentidos físicos, o sentido da visão é o mais importante, representando cerca de 80% de nossa percepção do mundo. Ele está diretamente relacionado com a luz que nos vem do Sol, conhecida cientificamente como luz visível ou espectro visível da luz, que é um conjunto de ondas eletromagnéticas. Essas ondas, ao penetrar em nossos olhos, sensibilizam a retina e desencadeiam o mecanismo da visão.
De acordo com a Física Ondulatória, ramo da Ótica da Física Clássica que estuda essas ondas, elas são criadas por cargas elétricas oscilantes. Particularmente, com relação à luz, os elétrons, partículas negativas presentes em todos os átomos da matéria, ao receberem energia por colisões com outras partículas mais energéticas, excitam-se e passam a ocupar níveis energéticos mais altos. Tão logo os elétrons excitados retornam aos seus níveis energéticos originais, a energia que haviam recebido é devolvida ao meio ambiente sob a forma de luz. É essa a luz que impressiona as retinas de nossos olhos.
Propagação da luz. Foi o inglês Isaac Newton (1643-1727) o primeiro cientista a perceber que a luz se propagava no vácuo e em linha reta. Descobriu, também, que a luz solar branca, ao atravessar um prisma de vidro, sofria dispersão e se decompunha nas cores do arco-íris. Para ele a luz era constituída por partículas que obedeciam às leis da Mecânica Clássica. Em 1687, outro grande cientista, Christian Huygens (1629-1695), levantou a hipótese de que a luz é constituída por atividade oscilatória, isto é, por ondas eletromagnéticas que vibram por toda parte nos objetos e nas coisas animadas ou inanimadas. Mais tarde, Thomas Young (1773-1829) conduziu experimentos que reforçaram a teoria de Huygens. Foi ele, também, que determinou a faixa luminosa do espectro eletromagnético para a luz cujo comprimento de onda situa-se na pequena faixa entre 4,0 • 10-7m a 7,5 • 10-7m, isto é, cobrindo a faixa de frequência que vai de 750 Angstroms a 400 Angstroms (um Angstrom equivale a 10 • 10-8cm). Isso equivale dizer, respectivamente, que essas ondas se dispersam na sequência das cores vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta, esta última a de frequência mais baixa. Na sequência abaixo do vermelho, temos os raios invisíveis infravermelhos (calor) e acima do violeta temos os raios ultravioletas (frios), também invisíveis. É bom lembrar que no vácuo todo espectro eletromagnético tem a mesma velocidade da luz (300 mil quilômetros por segundo), porém, nos meios materiais, suas velocidades diminuem de maneira desigual, causando o desvio das ondas e, consequentemente, a dispersão delas.
E como vemos a luz? A luz que vemos é a luz refletida ou devolvida pelo objeto, que é o inverso da luz absorvida pelo objeto. Assim, um objeto iluminado que absorve todos os comprimentos de onda da luz visível, menos o comprimento de onda referente ao vermelho, terá uma cor vermelha. Essa regra vale para cada uma das cores que vemos. E a cor branca? Nesse caso, o objeto reflete todos os comprimentos de onda da luz visível. Quando o objeto absorve todos os comprimentos de onda da luz visível, há ausência de cor e enxergamos o objeto negro ou preto. É assim que funciona a nossa visão.
Quando nascemos cegos ou posteriormente nos tornamos cegos, o que acontece com relação à visão? Para respondermos a essa pergunta nos valeremos das impressões que um cego, que preferiu ficar no anonimato, me transmitiu recentemente. Entram aqui as percepções do mundo ao seu redor e a forma de sentir e interpretá-las usando seus sentimentos e emoções. Com minhas poucas modificações, quase todo o texto que se segue é uma transcrição do que recebi via email. Que maravilha de entendimento!
De modo geral todos nós temos medo, entre tantos outros medos, do escuro, da velhice, do glaucoma e das doenças incapacitantes, entre elas a cegueira. Temos medo do escuro, medo de ficarmos cegos, porque ao caminhar por aí afora podemos topar com um poste, um buraco na calçada, com outra pessoa, enfim, nos assustarmos.
Diz ele: “Vocês têm medo do escuro porque nele vocês se sentem tão vulneráveis, tão fragilizados, tão pobrezinhos, tão impotentes, tão improdutivos. Pois devo informar-lhes que é como vocês se sentem no escuro, e não como eu me sinto após uma vida sem visão física. Vocês têm medo do escuro porque nele está o espelho da sua verdade mais profunda, nua e crua, sem a estética das cores e formas, sem maquiagem, sem roupa da moda, sem nada do que vocês estão acostumados a ver. Vocês têm medo de se olharem profundamente. Logo, nós incomodamos porque nossa cegueira lembra vocês de seus piores medos…”
E nosso cego continua dizendo: “Sim, nós incomodamos vocês, é verdade. Porque muitos de nós somos felizes, produtivos, trabalhamos e fazemos dinheiro, compramos casa, formamos família, cozinhamos, cuidamos da casa com independência, e muitas vezes, sobrando um tempinho, ainda fazemos trabalho voluntário, ajudando outros que não enxergam ou, até mesmo, os que enxergam. E tudo isso num país nada preparado para nós. E vocês se vitimizam reclamando da crise. Por outras vezes, incomodamos porque ainda muitos de nós pedimos esmola no nosso caminho de casa, e vocês se lembram da miséria humana, da desigualdade social, do quanto vocês não fazem para transformar todo esse cenário. Vocês têm medo e evitam o mendigo, o malvestido, o mal-encarado, o mal-apessoado, o cracudo (consumidor de crack); e nós, muitas vezes, somos ajudados e guiados por qualquer um desses na rua e nem ficamos sabendo quem são, mas precisamos de ajuda e aceitamos o primeiro braço que se nos oferece para atravessar a rua conosco. Aliás, não sabemos seus nomes nem suas aparências, mas ficamos, sim, sabendo quem são: seres humanos que, como qualquer outro, têm seu lado bom, e às vezes só o que lhes falta é uma oportunidade de exercê-lo.”
E vai por ai, “incomodamos vocês, sim, sinto muito, porque com tanta tecnologia, tantos chips implantados, tantos curandeiros, tantos milagreiros médicos e espirituais por aí, como ainda não nos curamos? Porque na consciência cega de vocês, cegueira é doença, e precisa urgentemente ser curada. Porque se Jesus curou os cegos, sinal de que o certo e saudável é enxergar. Desculpem-me se agora vou virar seu mundo de cabeça para baixo, mas conto a vocês que eu e muitos outros cegos temos a consciência de que escolhemos não enxergar quando encarnamos, pois só assim aprendemos coisas incríveis que não aprenderíamos de outra forma. Não, não aprendemos a ser ninja nem super-herói, como vocês viram em quadrinhos, livros e filmes; e desculpem-me ainda decepcionar vocês, mas não reconhecemos todas as vozes, não somos todos talentosos para música, não somos todos fluentes em Braille e nem todos gostamos de usar óculos escuros. Somos indivíduos, somos seres humanos, tão únicos quanto cada um de vocês, cada um de nós teve sua criação, seu ambiente, sua família, sua história. Por fim, incomodamos vocês, porque quando vocês conhecem um cego acham que já conhecem e compreendem todos os cegos, e quando conhecem o segundo, enxergam que não é nada disso…”.
Finalmente, “incomodamos vocês, porque não olhamos vocês nos olhos, não damos tchauzinho na rua, não reagimos aos seus apelos visuais e não respondemos quando vocês nos enviam foto sem legenda no Whatsapp, e assim desafiamos sua zona de conforto, sua forma tradicional de comunicação, suas convicções construídas há séculos. Abram os seus olhos e vejam: é hora de desconstruir… para reconstruir um olhar muito mais profundo e amplo sobre nós, sobre vocês mesmos, sobre todos nós juntos e misturados, afinal somos membros de uma só família, a família humana. Sim, você tem cegos na família humana”.
E esse é o desabafo de um cego anônimo e, chego a generalizar, de muitos cegos anônimos que perderam a visão física, mas possuem a visão espiritual e a consciência de que somos todos iguais em essência. Só podemos chamar isso de espiritualidade, um reconhecimento tácito de que somos espírito e corpo, mas este último nem sempre responde com toda a força do espírito.
Caruso Samel
Escritor, militante da Filial Butantã (SP)