A verdade dos fatos, inclusive das eleições
Começa a impor-se o conceito inventado nos anos 2000, bem ao gosto de fatos como o Brexit e Trump. “Vivemos atualmente a era da pós-verdade, na qual a verdade perdeu seus valores de referência no debate público, em benefício de crenças e emoções suscitadas ou encorajadas pelas notícias falsas tornadas virais, graças às redes sociais”.
Se levado aos acontecimentos políticos, que papel teriam os pontos cegos, a partir desse conceito, conforme análise do pesquisador e economista Fréderic Lordon?
Na versão original – post-truth politics – abre-se uma segunda via, agora. Katharine Viner (The Guardian) dá como exemplo o Brexit. Os eleitores, diz, enganados pelas notícias falsas, votaram pelo Brexit, ao mesmo tempo que as mídias favoráveis ao sim expunham, em colunas e outros formatos, os fatos que deveriam convencê-los a votar “fique”. Assim exposta, a mídia seria responsável pelo efeito do que dissemina? Sim e não. Pode estar ‘desconectada’, mercê dos jornalistas independentes, pode estar ‘ligada’ a interesses.
A pós-verdade entra em choque com a verificação de fatos? Mostra o pensamento editorialista, políticos e seus eleitores? Ou fecha o público em bolhas de filtro que lhe dão o que tem vontade? É ainda Lordon que tenta explicar: “A pós-verdade é uma vaga gigante, um tsunami que carrega tudo, até os impedimentos metódicos da verificação de fatos e do jornalismo racional…” O público acredita – não importa em que ou em quem – e depois espuma de cólera por ter-se rendido às piores mentiras.
O frenesi da verificação de fatos assume que o mundo é uma coleção de fatos e que os fatos não mentem. Mas, ao mesmo tempo, “começam” alguma coisa, pois não falam por si, precisam mediação, esquemas interpretativos e, quando se trata de política, ideologia. Segmentando a questão a eleições presidenciais (nosso tema), a bem da verdade, o surgimento de novos meios de difusão e informação aumentou o número de expostos às notícias falsas. Não é arriscado dizer, portanto, que, na América Latina, o sistema político como um todo recebe, em cheio, o impacto das novas formas de comunicação.
“A mídia tem uma importância política que não tinha”, escreveu, já em 1995, Alain Touraine. Que o digam os presidentes latino-americanos. Dentre os atuais, vários obtiveram mandatos ou reeleições fazendo campanha contra a mídia. Evo Morales, Lula, Christina Kirchner, Ortega, Chávez (antes) e Maduro (agora) são exemplos. Na vice-versa, quando a mídia se coloca a serviço do governo, temos o presidente hondurenho reeleito (novembro 2017), Juan Orlando Hernández Alvarado, e sua campanha aberta aos negócios, após a remilitarização do país e intimidação flagrante ao ‘inimigo’: 18 candidatos e militantes oposicionistas assassinados e criação de uma nova guarda pretoriana, a Polícia Militar da Ordem Pública.
Na Argentina, o neoliberal Mauricio Macri (eleito em 2015) tampouco pestanejou. Medidas de choque, sob a forma de decretos, visando sobretudo à imprensa, marcam o primeiro mês de mandato. Restabelecem o velho método consistente em subordinar a regulamentação da mídia ao presidente da República, criam obstáculos (econômicos) à mídia de oposição e disposições anticoncentração. Tudo como dantes no reino de Abrantes: lucro máximo e intervenção política. Às mídias ditas independentes carecem alternativas.
E o México, de imprensa historicamente limitada ao papel de transmitir propaganda governamental? Em julho, haverá eleições de resultado talvez imprevisto. Difícil – mas nada é impossível –, alijar do poder o PRI, Partido Revolucionário Institucional, e sua aliança oportuna com a mídia fiel. Receptora de generosos subsídios, em troca de coberturas sugeridas e promocionais, esta exerce influência aberta até no Judiciário e Legislativo. E já lá se vão 76 anos… Ano passado, onze jornalistas, assassinados “pelo crime organizado”, investigavam a corrupção política. Lei em vigor permite, entre outras cláusulas, espionar cidadãos, jornalistas e advogados inclusive, usando dispositivo-espião comercializado pelo (israelense) Grupo NOS.
Muda radicalmente o panorama na Venezuela, de governo socialista e imprensa privada de oligopólio. O Grupo Cisneros está presente em 39 países, com a televisão, e a mídia impressa, de propriedade corporativa, é extremamente crítica do chavismo. Ninguém, no continente ou fora dele, parece preocupar-se com a ameaça de Trump de intervenção militar no país.
Apesar de tudo, quantidade sugestiva de estudos sobre as últimas coberturas eleitorais na América Latina, por vezes com financiamento de observadores internacionais, oferece provas empíricas que reduzem a propalada onipotência da mídia. Em ano eleitoral também no Brasil, entra em xeque, ainda, a Internet – e como ali se retrata a política, com suas implicações de pós-verdade e verificação de fatos. Segundo o think tank brasileiro ‘Plataforma Democrática’, analisando o processo eleitoral no país, a centralidade da Internet é reconhecida por parte das principais lideranças nacionais. O eleitor brasileiro, mesmo ausente do jogo político-partidário, atua por meio da Internet e sites de redes sociais. É um cidadão interconectado – e como! Para os otimistas, as tecnologias de comunicação abrem novas possibilidades, como canais alternativos de informação, que permitem emitir opinião própria. Para os pessimistas, a tecnologia ajuda a quebrantar a verdade. Seria negativo o impacto da Internet quanto à política e cultura, polarizando o debate.
No espaço midiático há pelo menos três décadas, outro fator de influência na opinião pública são os “óculos especiais” ou “oráculos dos tempos modernos”: as sondagens. Seus produtores, pesquisadores e institutos pretendem contribuir, coletivamente, para impor uma forma de ideologia dominante. O que não é alvo de sondagem tenderia a não ser percebido como digno de atenção; logo, não existe.
Palco armado, outubro não tarda. Já com atores em cena, outros prestes a entrar. E os bastidores, então…
Clecy Ribeiro
Jornalista, professora das Faculdades Integradas Hélio Alonso, RJ