Andarilho por mares nunca dantes navegados, o historiador Robert Kaplan, ao raiar do século XXI, evoca uma mesa-redonda sobre segurança Af-Pak (Afeganistão e Paquistão), em Washington, junho 2009. Um dos participantes, coronel do Exército veterano do Vietnã, aposentado, com um filho morto no Iraque, assomou-se com comentário mordaz, sobre o fracasso das intervenções no Oriente Médio, na década de 1980. “Por que não nos propomos consertar o México?” Colocava os Estados Unidos na fronteira mexicana à beira de um processo de falência, com implicações muito mais profundas para a sociedade e o poderio americano que qualquer coisa acontecendo a meio mundo de distância. O coronel Andrew Bacevich, autor, hoje é presidente do Quincy Institute, de onde partem suas farpas à política externa americana e, até, ao próprio Kaplan.
Às ideias e pensamento de Bacevich aliaram-se, dentre tantos, o conhecido Samuel Huntington. A fronteira do México, diz, constitui um desafio que os Estados Unidos decidiram ignorar, “por sua própria conta e risco”. Seu contínuo fluxo de imigrantes hispânicos “ameaça dividir os Estados Unidos em dois povos, duas culturas e duas línguas”. Se essa imigração parasse abruptamente, clama, as entradas ilegais diminuiriam, aumentariam os salários dos cidadãos americanos de baixa renda, cessariam os debates acerca do uso oficializado do idioma espanhol.
Início da emigração. Mexicano-americanos traçam sua história a partir de mais de quatro séculos, quando a Espanha conquistou o México e o tornou uma colônia. Muitos são imigrantes ou seus descendentes, outros vêm de famílias que viviam no Sudoeste, antes deste integrar-se aos Estados Unidos, na guerra de 1846-1848. Por isso dizem: “Nós não cruzamos a fronteira, a fronteira nos cruzou”. Nesse Sudoeste inclui-se a maior parte do território do Novo México, Utah, Nevada, Arizona, Califórnia, Texas, Ocidente do Colorado. A emigração em massa começou de fato em 1910, por conta da Revolução (1910-1920). Legal ou ilegal, é como é: uma emigração violentada pelo tráfico de drogas e consequentes corrupção e mortes diárias. Mas a “reconquista” do Sudoeste americano pelos imigrantes mexicanos atenderia a um “destino” traçado em áreas que já foram parte de sua vida e eles a têm como sua própria casa.
O professor Charles Truxillo, da Universidade do Novo México, antecipa: até 2080, os estados do Sudoeste dos Estados Unidos e os do Norte do México se unirão para formar um novo país, La República del Norte. Seis das doze cidades mais importantes do lado americano da fronteira são mais de 90% hispânicas e apenas duas – San Diego, na Califórnia, e Yuma, no Arizona – têm menos de 50% de hispânicos. Para Kaplan, os Estados Unidos deixaram de ser uma ilha, protegida pelo Atlântico e pelo Pacífico. “Aproximaram-nos do restante do mundo não só a tecnologia, mas também a pressão da demografia mexicana e centro-americana”. Dá razão a Bacevich: resolver o problema do México é mais importante. “A nação, como um todo, se torna bilíngue e bicultural”. Associando-se, teme Huntington que, a persistir a tendência, essa divisão tome o lugar da divisão racial entre negros e brancos,”como a cisão mais séria na sociedade americana”. Um protótipo de região de agrupamento étnico concentrado já existe: Miami. É a mais hispânica das grandes cidades americanas, com esmagadora maioria de cubanos. Elite e empresários em fuga do governo Fidel Castro, no sufoco de sanções econômicas, deixaram de enviar dinheiro para casa e investiram ali. “Em Miami não existe pressão para se tornar americano”, constatam os sociólogos.
Sempre em alta tensão a fronteira mexicana! Que o digam aos historiadores os feitos e fatos da primeira década deste 2022. Aos mexicanos e centro-americanos do Triângulo do Norte (El Salvador, Honduras e Nicarágua) uniram-se outros tantos, escapando às intempéries domésticas – naturais, econômicas e pandêmicas. Nominalmente: Haiti, Venezuela,
Brasil, a habitual Cuba, Colômbia, Panamá, Costa Rica. Alimentam a hostilidade do americano, sobretudo pelo risco de contaminação. O México, por onde transitam tantos desesperados (1,66 milhão em 2020 e registro de 35 mil homicídios) é país com mortalidade das mais altas pela pandemia. A fronteira, com extensão de mais de 3 mil quilômetros, marcados por um rio pouco profundo, espelha o fosso econômico entre os dois países.
Nem esse estardalhaço alija o povo americano e o Congresso das preocupações com a inflação e o entorno econômico. Tampouco é prioridade, apenas conveniência, na agenda Joe Biden, voltada para o Leste-Oeste a expensas do Norte-Sul. Mas aproveita o contexto favorável para projetar a causa humanitária, que leva aos quatro ventos e a quantos conflitos. Por isso, decidiu cancelar a ‘Título 42’, medida de expulsão rápida dos migrantes em busca de visto ou asilo. Há pressões da economia, que demanda a costumeira mão de obra barata da imigração, após filtro seletivo. É um mercado de trabalho sobrevivente e necessário ao país. O urso dominador e o porco-espinho na defensiva, conforme a imagem de Jeffrey Davidow, veterano do serviço público americano de imigração, no México.
Intervenção humanitária. “Liderança é a arte de resolver o fosso entre experiência e visão”, sentencia Henry Kissinger, o grande artífice da política externa dos Estados Unidos. Por isso, esta evolui. Com base nos princípios tradicionais de Roosevelt (o direito de intervir) e Woodrow Wilson (apoiar, promover e, quando necessário, defender a democracia em outros países), arrastou-se por todo o século XX. Chega ao século XXI como doutrina de intervenção humanitária. Bem mais apropriada ao mundo interdependente de hoje, concordam os analistas. Justifica ações ao gosto da opinião pública americana, bem como dos aliados estrangeiros – sempre e quando inerentes ao tempo/ espaço. Uma saída, ou melhor, uma estratégia de saída de um problema temporário (guerra na Ucrânia) ou de um atoleiro permanente (fronteira do Rio Grande).
Presidente emeritus do Conselho para as Relações Exteriores, Leslie H. Gelb censurava, há uma década, “os demônios da ideologia, política e arrogância”, que, vez por outra, agitam o debate governamental e público. ”Forças persistentes e atormentadoras, não sujeitas ao dá-e-toma”, demônios seduzindo os líderes “a pensar no que supostamente devam fazer, e não do que possam fazer”. Na América Latina de transformações políticas desde os anos 1980, estarão em curso mudanças também no “papel especial” que os Estados Unidos se arrogaram? Provavelmente.
Mais agitado e escondido que o debate sobre a fronteira do Rio Grande é o do decantado declínio americano, sem qualquer unanimidade entre crentes e descrentes, céticos, pessimistas ou otimistas. Sem esquecer as outras esferas de influência a assombrar.