Brasil – Um projeto para o século XXI

Zeitgeist. Gosto da palavra. É a essência de seu conteúdo, o espírito do tempo da época, na concisão do idioma alemão. Tema de pródiga literatura do século XX, extrapolando para este, na voz de historiadores, sociólogos, cientistas políticos, professores, enfim a indústria cultural em todos os seus vieses. Despontando o século XXI, ano 2000, escancara-se uma questão: a exigência universal de pluralidade. E reconhecê-la como único princípio que tornará suportável a vida.

Hobsbawn, no clássico e profético A Era dos Extremos, já se interrogava quanto à persistência de um sistema de dominação, causa da divisão de sociedades, bem como do abalo num sistema internacional de 40 anos. Morin calca na violência de um mundo para ele em neurose e necrose (O Espírito do Tempo). Alternativas existem, clama Habermas em A Era das Transições, em que expõe a ideia de um Estado democrático de direito, “uma amarração paradoxal de princípios contraditórios”. Afeito às crises dos mercados financeiros globais, Greenspan refere, em A Era da Turbulência, as aventuras em um novo mundo. Para o cáustico e sábio Pierre Bourdieu, a invasão neoliberal reveste-se de governos regidos pelo poder arbitrário de uma continuidade de dominadores, que só trazem insegurança e incerteza sobre o futuro, e também sobre eles próprios. Contrafogos, o fogo de encontro a um incêndio florestal para impedir que se propague, é uma convocação aos intelectuais e à mídia para a luta contra os efeitos perversos da lógica de mercado.

Mais didático, será Duclos o apologista pragmático da quebra das barreiras, em Sociedade-mundo, o Tempo das Rupturas. Supõe a articulação de quatro princípios soberanos, “que não se deixarão destruir uns aos outros”. A saber: a natureza, o corpo/espírito, a cultura (como via de resistência), a informação. Um projeto cívico para o século. Simbolicamente, a natureza representa o não manipulado, mas não reina sobre as intempéries. Seria preciso preservá-la em nível de patrimônio mundial e incutir, sobretudo nas elites predatórias, a mentalidade para reconhecer tal fato. Na Apresentação do detalhado livro de Giddens sobre A Política da Mudança Climática, tido como de realismo sóbrio, o professor Sérgio Bresserman Vianna assegura que essa mudança é agenda permanente e “irá implicar profundas transformações econômicas, políticas, sociais e no pensamento humano”. Sua análise as vincula à governança global e ressalta, também, o papel do Brasil, com “vantagens competitivas para fazer mudanças relativamente rápidas na direção de uma economia de baixo teor de carbono”. O maior investimento necessário estaria nos setores de educação, pesquisa científica e desenvolvimento. No contexto, engajar empresas no processo de inovação tecnológica e acelerar o desenvolvimento humano.

As democracias encorajam a Ciência, não só quanto à questão climática mas outros fatores de ameaças, como as doenças. Bem ao contrário dos governos não democráticos, controladores da sociedade civil a seu bel prazer e autoridade. A manipulação visa servidão. Fome, doença, morte; desinformação, deformação e deturpação, falsidade; ensino doutrinário; sexualidade a serviço da pornografia, pedofilia, prostituição. Como bem o disse Bourdieu, uma das mais desiguais distribuições, e a mais cruel, é a do capital simbólico, ou seja, da importância social e das razões de viver. Porque prega como inevitável o sofrimento e indispensável a repressão às resistências.

Ciência e cultura caminham pari passu. Cultura e política idem. Ante a obra extensa e expressiva de Bourdieu, espelhei-me no tema de tempos passados e presentes, a dominação masculina. A essa questão-título, o autor opõe uma outra, mais pertinente e científica e, sem dúvida também, mais urgente politicamente: as relações entre os sexos. São bastante conhecidos, lembra, os mecanismos de historicismo responsáveis pela eternização de certos aspectos relativos à subordinação da mulher, que a despojam de seu papel como agente histórico. Defende, assim, resistência legal (reformas política e jurídica) para o irromper de novas estruturas institucionais, que irão refletir-se em toda a ordem social. Bourdieu tem uma sentença clara para a sociedade: não é tentando persuadir, mas obrigando a pensar, que nos permitimos formar consciências.

O quarto princípio de ruptura é a informação. O professor Octávio Ianni (ensaio em Desafios da Comunicação, Editora Vozes) chama ao palco seus três atores, que chama príncipes. O Príncipe de Maquiavel “é uma pessoa, uma figura política, o líder ou condottiere, capaz de articular inteligentemente as qualidades de situação e liderança (virtù) e as condições sociopolíticas (fortuna) nas quais deve atuar. O Moderno Príncipe de Gramsci “é o partido político, no qual combinam-se e fertilizam-se as capacidades de uns e outros líderes, de tal modo que a interpretação e atividade inteligente, diante do jogo de peças sociopolíticas, cabe a ele. Pode realizar a metamorfose essencial das reivindicações sociais, desde que voltado tanto a seus seguidores quanto aos outros setores da sociedade”. Já O Príncipe Eletrônico “subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros”. Presente e invisível, permeia todos os níveis da sociedade, mas tende a expressar a visão dos grupos de poder, “a indústria de manipulação das consciências”, em crescente desenvolvimento e além das instituições clássicas, democráticas ou não.

No século passado, Aldous Huxley usou a trilogia sobre o mundo novo como um alerta ao despertar do ser humano, conforme ele mesmo explica no prefácio do primeiro livro. Escolher entre a insanidade de um lado e a demência de outro. Mas, ainda assim, com um terceira opção alternativa: a sanidade. Visão idêntica a de Duclos, ao acenar com um quinto princípio à intrigante visão de seu mundo quaternário: o desejo indestrutível que nasce daqueles a quem se interdita um papel no mundo.

Passo a palavra, a pena e a ação ao Brasil democrático do século XXI, Brasil do presidente Lula de ampla frente. Uma ruptura com o tempo ainda presente e o irromper de um futuro próximo plural. Respirar, sobreviver. Uma sociedade ainda indefinida, algo como um ziguezaguear por tudo que já existe, conforme Duclos.