Dante e Marsílio contra o papa

Importante figura da geração de filósofos que pontificaram durante os séculos XIII e XIV nas ilhas britânicas e contemporâneo do papa João XXII (1249-1334), William de Ockham (1285-1347), tema de nosso artigo anterior, não foi o único a posicionar-se contra o poder papal por meio de severas e contundentes críticas.

Antes dele, João XXII já havia sofrido, em 1324, “desconcertante e arrasador ataque” desferido por Marsílio de Pádua (1275-1343), pensador italiano contemporâneo de Ockham.

Opção política. Criador de uma filosofia de opção essencialmente política, Marsílio nasceu em Pádua, Itália, em 1275 (ou 1280), e morreu em Munique, Alemanha, em 1342 (ou 1343). Completou seus estudos na Universidade de Paris, onde estudou filosofia, em especial a de Aristóteles, e posteriormente também viria a ser reitor dessa prestigiosa instituição de ensino superior.

Dante Alighieri (1265-1321), poeta italiano, nasceu na cidade de Florença e morreu exilado na de  Ravena, também na Itália. Além de poemas, escreveu importantes livros em prosa, mas sua obra-prima e mais famosa é A Divina Comédia, poema épico em que Dante relata sua viagem imaginária ao inferno, ao purgatório e ao paraíso, encontrando mortos ilustres do passado ou de sua época e discutindo amor e paixões, religião e ciência, fé e razão.

Averróis reencarnado. Filósofo, teólogo e médico, Marsílio, como um Averróis reencarnado, haveria de se manter, a despeito de sua religião, firmemente irredutível em seu posicionamento racional de “não admitir que argumentos teológicos pudessem ser alegados no discurso filosófico, e reduziria a filosofia aos limites da razão”.

Para Marsílio, deve haver um único poder — o do Estado laico — poder esse que tem por dever não contrariar as leis naturais e humanas, organizando-se com o intuito de reger a sociedade.

O Estado, observa Marsílio, surgiu primeiro do que a Igreja. Mas seus canonistas (especializados no conjunto de leis dessa seita) esquecem isso “quando invocam a Escritura como única fonte legal para legitimar a autoridade”.  

O poder legítimo do Estado, defende Marsílio, não pode ser contestado, e, sim, deve ser, além de soberano, indivisível, uno, inalienável, imprescritível e, como tal, manter-se livre de descabidas intromissões, seja da Igreja, seja de quaisquer outros grupos que disputem a liderança da sociedade.

Assim, ao combater tais indevidas ingerências da Igreja em assuntos que dizem respeito apenas ao Estado e se opor, de modo também contundente, à plenitude de poder pretendida pelo papa, Marsílio criava sua pioneira doutrina do chamado Estado laico.

Em seu livro Defensor Pacis, Marsílio discorre a respeito da supremacia do Estado sobre qualquer instituição, inclusive a Igreja Católica e seu sumo pontífice.

Testemunho da História. Por seu turno, Dante Alighieri, sumo poeta italiano, afirma numa de suas obras ser da alçada do papa apenas o poder espiritual, pois para o maior gênio poético da Itália o poder político é um direito reservado tão somente ao governo laico.

Como testemunha a História, também na época do ilustre poeta o papa era o soberano temporal e espiritual, e “a política e a religião estavam entrelaçadas”.

Em junho de 1301, Dante fez parte do movimento florentino contra o papa Bonifácio VIII (1230-1303), que planejava mandar dinheiro e tropas para Florença a fim de conter inimigos pessoais. Em consequência de sua oposição ao chefe da Igreja, o grande bardo teve de amargar a sina do exílio em Ravena, e não mais pôde voltar à sua amada Florença, cidade que lhe foi berço.