No prefácio da edição agosto 2010, Eduardo Galeano lamenta “que o livro não tenha perdido a atualidade”. Obviamente, seu clássico As Veias Abertas da América Latina. Dez anos depois, o lamento é um gemido. Dos múltiplos colonizadores de antanho, chega-se ao século XXI com a mesma desumanidade e devastação. As “fontes subterrâneas do poder”, o solo e subsolo, continuam a gerar golpes de Estado, revoluções, doenças, genocídio. Amazônia, a mais gritante e perene.
“Na América Latina, é normal: sempre se entregam os recursos em nome da falta de recursos”. Requiescat in pace, Galeano! Há um aceno de mudança. Os oito amazônicos, liderados pelo Brasil, deslancharam o Fundo. E o Novo Banco de Desenvolvimento, NBD, estará apto a investir na Floresta. Estes são anos de corrida aos minerais “tecnológicos” (lítio, terras raras e outros), com um preço a pagar. Quem sabe inverta-se, enfim, o dito da lei do mais forte (o lucro) sempre a melhor. O projeto Amazônia 2030 já decola, com a redução do desmatamento. Faz escalas no combate à degradação – perda de vegetação associada à menor absorção de carbono – e proteção à vegetação secundária. Percebe o ser humano, e nele investe. É essencial recuperar também os povos indígenas, os cuidadores da terra por excelência.
Devastação. Um alerta audível chegou ao Congresso brasileiro em 4 de setembro 2019, quando de depoimento do cientista Paulo Brand. Pesquisas sobre o clima da região, face a desmatamento maior e queimadas, mais o aquecimento decorrente, acusavam 5,2 milhões de hectares de terra devastados. Constatou Brand, então: “Se houvesse uma seca em 2019, a situação seria catastrófica”. Mas só agora pensa-se em reflorestamento, conforme expôs o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, no seminário Thinking 20, a Global Order for Tomorrow (Rio de Janeiro, 29 de agosto). O projeto envolveria os países amazônicos, seu debate incluindo os fóruns do G20 e ONU, bem como a COP28. Mesmo porque é preciso gerar financiamento.
Não está sozinho. Duas vezes ministra do Meio Ambiente, Marina Silva batalha por políticas de bioeconomia social. Tem o concurso de órgãos oficiais e não oficiais, mais ou menos (pre)ocupados com a Amazônia (Ibama, Ipea, Ipam, FGV). No Centro Woodwell de Pesquisa do Clima, por exemplo, estão os Ph.D. Britaldo Soares Filho (impacto da conversão de ecossistemas naturais em agricultura), Marcia Macedo (preservação do Cerrado e Programa Água), Manoela Machado (incêndios e seus condutores, em geral humanos, visando ao uso da terra para pasto e agronegócio). O Cerrado projeta, ainda, Ariane de Almeida Rodrigues e Divino V. Silvério, em estudos conclusivos pela necessidade de desmatamento zero e recuperação dos 5,2 milhões de hectares de desmatamento ilegal. Uma compensação, ainda que parcial, do impacto sofrido pela floresta.
Defesa antiga. Em 29 de junho, debate na Fundação FHC [fundacaofhc.org.br] reuniu Marina Silva e o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Ilan Goldfan, que se propôs ser um futuro guarda-chuva de projetos regionais. “Amazônia sempre”. Contudo, aquém dos trilhões necessários para medidas perduráveis. E Marina diz ter chegado o momento de a política ambiental brasileira envolver o público, o privado e a sociedade, ideia que defende há 20 anos. “Existe, de fato, um compromisso do governo federal quanto ao enfrentamento da mudança climática”. Daí o Plano de Transição Ecológica e o (novo) Plano Safra Sustentável, para uma agricultura de baixo carbono. Metas em geral: desmatamento zero, hidrogênio verde, produção de alimentos.
Envolto nesse mosaico, intricado e complexo, chegará o Brasil à COP28 em Dubai, fins de novembro/início de dezembro, também apoiado por dois trabalhos científicos. Um será texto referência: relatório do Giec, Grupo Intergovernamental de experts sobre a evolução do clima. Foi publicado em 20 de março [GIEC – 6º Rapport], aprovado por representantes dos 195 países do Grupo, Brasil inclusive. Constata que as políticas atuais levarão o aquecimento global de 2.4 grausC a 3.5 grausC, até fins do século. Recomenda acelerar a política de adaptação à mudança climática, mas integrada à proteção aos ecossistemas e biodiversidade. Mais a redução – rápida – das emissões de gás do efeito estufa. Infelizmente, o financiamento internacional ainda é insuficiente. Um repeteco.
O segundo texto parte da ONU [theamazonwewant.org/science panel for the amazon], um painel da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia. Trabalho de avaliação de 200 cientistas dos países amazônicos (2021), ressalta a interação biogeofísica dos ecossistemas entre os Altos Andes e a Baixa Amazônia. É um feio balanço do desmatamento e degradação, agravados a partir de 2015. A Amazônia está 1.2 grausC mais quente. Daí vir aumentando a frequência de eventos extremos – inundações e secas –, com efeitos em cascata. A floresta perde resiliência: stress das secas, incêndios, mortalidade das árvores. Aproxima-se daquele ponto extremo em que a floresta contínua cede lugar a uma floresta degradada. Remédio? Talvez a diplomacia de Marina Silva: cidadão x governança. Em miúdos, política bioeconômica associada a políticas biorregionais.
Ação na Índia. O que esperar de um novo acordo verde? “O Brasil deve ser o centro de uma nova economia, para liderar a transição para um novo modelo”. A conhecida ambientalista indiana Vandana Shiva é otimista. “A Amazônia será salva, se os detivermos”. Eles quem? Os piratas de hoje, como os alcunha, ela que foi pioneira do plantar de sementes orgânicas, em prol da biodiversidade e direitos dos agricultores. Um trabalho a que se permitiu com a organização que criou em 1991, Navdanya, em hindi Nove Sementes ou Nova Dádiva. Bancos de sementes para preservar a herança agrícola. Chegou a 40 desses bancos, para combater a monocultura. Crítica contumaz da Revolução Verde na Ásia (anos 1960), argumentava que produzir alimentos para lucro era prática poluidora, com perda da diversidade. Em 1998, chega à versão internacional da Navdanya – a campanha Diferentes Mulheres para a Diversidade, mulheres plantando sementes localmente adaptadas a mudanças climáticas.
Hoje, a Índia compromete-se a restaurar 21 milhões de hectares de florestas até 2030. A política nacional – 33% de áreas do país com árvores – esbarra na ciência. Não quaisquer árvores; há que evitar as espécies invasivas. “Nossa saúde está ligada à saúde do planeta”. De fato, Vandana, o que temos hoje? Um bilhão de pessoas com transtornos mentais, de gravidade maior ou menor, sem contar bilhões mais com doenças infecciosas, males crônicos, desnutrição. Depressão e ansiedade, a constante.
Um marco este 26 de outubro, Dia da Saúde Mental. A convivência com os bilionários da indústria puxou um cordão de tragédias anunciadas.
“O meu país foi a primeira experiência da Revolução Verde no Punjab e agora é uma terra arrasada; os solos desapareceram, as águas desapareceram”. Trinta mil mortos. Vandana Shiva revive o fato em seu livro A Violência da Revolução Verde.
Ameaças. A violência se faz presente também na ‘revolução’ climática. Secas provocam escassez de alimentos, instabilidade, migrações. Países-ilhas, antes portos seguros, estão ameaçados de submergir. Bases, nas costas do Pacifico e Atlântico, idem, com a elevação dos mares. Derretimento das calotas polares liberam patogenias congeladas. Projeções do Banco Mundial até 2050 assustam: migrações de 49 milhões de pessoas no leste asiático e Pacífico, 40 milhões no sul asiático, 19 milhões no norte africano, 17 milhões na América Latina e cinco milhões no leste europeu e Ásia central. Ainda pior, o sub-Sahara, com 86 milhões. Uma transição tão dramática quanto do carvão para o petróleo e a energia nuclear.
Em se plantando tudo dá. Não só o alimento, mas as sementes do conhecimento, cooperação, empenho. É o próprio futuro da Terra na resposta global à mudança climática. “Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco? Quero também que os filhos e filhas deles entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância. Porque, se a floresta for completamente devastada, nunca mais vai nascer outra”. Canto profético do xamã yanomami David Kopenawa, em A Queda do Céu.