Explica, mas não justifica

Neste outubro 2022, Taiwan hospeda em Washington D.C. exposição inusitada. São 50 fornecedores de produtos de tecnologia 5G, para mostrar aos americanos que Taiwan partilha seus “valores democráticos”, mas tem também tecnologia avançada além de semicondutores, estes uma fatia de 90% da produção global. Uma alusão direta aos negócios em expansão da Taiwan Semiconductors Manufacturing Company, TSMC, ora com pé fincado na Floresta do Silício em Portland e no Deserto do Silício em Phoenix, com fábricas réplica do seu Parque da Ciência em Hsinchu.

De mãos dadas com as defasadas e destronadas Intel, Qualcoom e Nvidia (rivais no mercado interno americano), propõe-se a desenvolver substitutivos das terras raras (exportação cara, sujeita a restrições da China) e fabricar e reciclar chips. São as duas preciosidades vitais ao mundo digital.

Através de parcerias, os negócios se farão em nível diretamente com os governos estaduais. Em julho, o Congresso americano aprovou a Lei de Chips 2022, para promover sua fabricação, design e pesquisa. Um mês antes, fora lançada a Iniciativa US-Taiwan para o Comércio do Século XXI, com enfoque na economia digital, facilitação comercial e preocupação ambiental.

Pretensão dos EUA. Taiwan já se inclui na Estratégia Indo-Pacífico, para a qual os Estados Unidos tentam atrair os países em desenvolvimento, competindo com China, Rússia e os BRICs, empenhados em erigir um mundo plural.  O jogo de xadrez do século XXI começou com ele, há 20 anos. Ao vencedor, o poder geopolítico hegemônico. “O assalto russo à Ucrânia é o exemplo mais impiedoso e conspícuo, mas definitivamente não o único”, deplora Michael T. Klare, conceituado analista contemporâneo. Cita, em apoio, os exemplos recentes da demonstração de força militar americana no Pacífico ocidental para conter a China, além de ações da Índia e Turquia para aumentar o próprio alcance geopolítico.

No tabuleiro, há dois pensamentos políticos bem conhecidos. O de Sir Halford Mackinder recai na Eurásia e sua riqueza em recursos; o de Alfred Thayer Mahan, no controle dos mares e do comércio global. Washington adotou ambos. Pequim e Moscou tornaram-se concorrentes. Afinal, são suas casas, ou melhor, territórios que habitam. Por isso mesmo, outras questões impõem-se além de Taiwan: os mares do sul e leste da China, fronteiras com outros países; a área do Báltico e suas três repúblicas membros da Otan; o Ártico, onde avança, a duras penas (sanções econômicas e clima polar), o projeto de gás natural liquefeito, desde a exploração ao transporte para Europa e Ásia, e que vem de conceder os primeiros dividendos aos investidores.

Quem bem “fotografou” o ambiente geopolítico de agora foi o professor e autor Peter Gowan, em seu livro de 1999 A Roleta Global. Ele o apresenta como “uma aposta faustiana de Washington para a dominação do mundo”. A começar pela transformação do ambiente interno dos países (liberalismo) até chegar à subordinação dos setores produtivos aos setores financeiros (o sistema dólar-Wall Street), alijando a massa trabalhadora de tudo. Anos 1900 pródigos em sedimentar as bases. Como a economia do pânico em 1998, com as crises financeiras do Leste asiático e a derrota política do Japão que se arvorou em salvador. Como o atlanticismo, primeiro passo para dividir a Europa, iludida pela treda suposição do “guarda-chuva” americano. Como a expansão (política) da Otan no Leste europeu e as intervenções pelo petróleo do Oriente Médio. Já no início desse século, 1992, documento vazado no Pentágono definia a estratégia Eurásia (a Ucrânia seria o prêmio): dividir a Europa, excluir a Rússia dos Bálcãs, assegurar o Mar Negro, unir o bastião turco da América, erigir uma base garantidora dos recursos energéticos e minerais do Cáspio e das repúblicas asiáticas da antiga União Soviética.

Segurança coletiva. “Ao sustentar o poder da Otan de maneira que enfraqueça a Rússia, os Estados Unidos estão sustentando o seu domínio monocrático na política europeia, precisamente para derrotar pressões decididamente europeias por uma ordem de segurança coletiva”, explica Gowen, que salienta a “política sutil” dos anos de mandato do presidente Clinton. Inclusive o acordo com Moscou sobre segurança nuclear na Ucrânia, país que logo passou a receber maior volume de ajuda e abordagem mais flexível do Fundo Monetário Internacional.

“O colapso do bloco soviético colocou as elites americanas diante de uma tentação faustiana”, diz Gowen. E somou-se ao processo de globalização, sob a mola propulsora do enorme poder político americano e seu empresariado, associado a um regime monetário e financeiro internacional.

Gowan morreu em 2009, sem resposta às suas dúvidas: pode haver um caminho fora da globalização? O processo começou e vai avançando sob a forma de guerra comercial. Promete espirrar sobras para todo mundo, seja globalizado por vontade própria ou levado de roldão. O Sul que se cuide, a Amazônia ainda mais…