O amigo desconhecido

Todos podemos possuir um amigo sincero e desinteressado, sempre pronto a nos instruir, educar ou deleitar o espírito. Um amigo sincero em quem podemos confiar cegamente, incapaz de rir de nossa ignorância ou motejar da nossa presunção; que nos proporciona as mais sábias lições, silenciosa e persuasivamente, ou nos transmite as emoções por outrem sentidas ou vividas, sem a arrogância dos que mais sabem nem a vaidade dos que viveram mais do que nós a vida.

Um amigo desinteressado, que nos desvenda os tesouros dos seus conhecimentos à luz de uma vela, no nosso quarto de pobre, como sob os candelabros de prata da biblioteca mais rica.

Um amigo que não menospreza a pobreza, como não inveja as riquezas deste mundo. Não distingue o pobre do rico, o medíocre do talentoso, o ignorante do letrado, nem vê sexo, raça ou religião.

Se o desprezamos por algum tempo, entediados, ou preterimo-lo por um passeio ou uma palestra, para nós retorna, contente, ao nosso menor gesto: compreensivo às nossas fraquezas, sem exigir explicações, sem exprobrar nossa insensatez, sem queixar-se da nossa ingratidão.

E, de volta dum dia passado ao ar livre, na praia ou no campo, enormes e ensolarados, quando sentimos fatigados, o físico, pelas caminhadas longas e o espírito, pela convivência e bulicio humanos, como nos faz bem a companhia desse amigo acolhedor, que nos tranquiliza e reanima, conforta e deleita, na comunhão silenciosa de ideias e sentimentos!

Um amigo dedicado, que nos faz viver em Paris ou nas praias desertas duma longínqua ilha do Pacífico; que nos transporta, num avião de guerra, às montanhas de Burma ou em canoa às nascentes do Amazonas; que nos faz andar de ricksha em Pequim e de subterrâneo em Londres; que nos apresenta um magnata nos salões do Waldorf Astória e um escultor sem fama nos subúrbios de Florença; que nos conta as vidas de sábios e párias, guerreiros e filósofos, estadistas e bailarinas…

E tudo isso — vidas, hábitos e costumes — ele, esse amigo precioso, nos descreve e mostra entre as quatro paredes de nossa sala, ao nosso lado, sentindo conosco os dramas de paixões e misérias desses pobres galés da vida, como todos nós.

Um amigo, que, mais brilhante e erudito do que nós, não se enfastia de nossa companhia, não censura nossas atitudes, nem ridiculariza nossos gestos.

Fica morando com a nossa pobreza, às vezes, tão bem compreendido por nós e tão amado, que nos acompanha pela vida afora, esforçando-nos por seguir seus conselhos, respeitar suas ideias, viver como tantas vezes ele nos tem aconselhado.

E pensar-se que este amigo exemplar custa tão pouco e se acha tão ao nosso alcance que, vezes sem conta, o preterimos por uma gravata vistosa, um colar de vidro, uma pulseira de berloques tilintantes, ou outra fantasia qualquer de nossa vaidade.

Como penhor de amizade a alguém a quem se ama ou em quem se pensa, nas festas deste fim de ano, apresente-lhe este amigo tão injustamente ignorado: um bom livro.

Publicado em 8 de dezembro de 1952.