O cinismo, ou o que hoje chamamos de antissocial

Em seguida ao apanhado biográfico do artigo anterior a respeito de Antístenes de Atenas (444-365 a.C.) e Diógenes de Sinope (413-327 a.C.), este artigo passa agora a discorrer, também de maneira resumida, sobre a doutrina desses dois filósofos gregos.

Segundo o historiador do pensamento filosófico José María Valverde, a filosofia de Platão e a de Aristóteles “tentaram dar respostas positivas às perguntas que Sócrates fazia”. Diferentemente, porém, desses dois grandes discípulos do Mestre, um grupo de outros discípulos da escola socrática  levaria à risca a crítica de Sócrates às “falsas certezas baseadas na opinião” e concluiria que todo conhecimento é impossível.

Esse é o caso, diz Valverde, de Antístenes, fundador, com seu discípulo Diógenes, da corrente filosófica chamada cinismo, da qual são também os principais representantes. Para Antístenes, “todo conhecimento é duvidoso, pois busca ideias gerais, quando, na verdade, existem apenas coisas singulares (por exemplo, este cavalo)”.

De acordo com outro historiador da filosofia, Bryan Magee, além da valorização da busca da virtude no autocontrole e na autonomia individuais, Antístenes recomendava também a independência de espírito e as vantagens de uma existência vivida com simplicidade e naturalidade.

“Como um cão”. Para Diógenes, porém, a vida dos cães era um “exemplo prático” dessas duas virtudes preconizadas por Antístenes e “modelo ideal” de sociedade. O termo grego para a expressão ”como um cão” é “kýnikos”. Como as pessoas diziam que Diógenes vivia “como um cão”, puseram nele esse apelido, do qual derivou a forma latina “cýnicu”, que, por sua vez, deu origem à nossa palavra “cínico”. “Assim foi cunhada a palavra que ainda hoje usamos”, diz Magee, “mas seu significado mudaria com o tempo”.   

O apelido que deram a Diógenes evidencia o radical desprezo do filósofo pelos costumes humanos. Ele chegaria a ponto de considerar sem importância, ou até inúteis, coisas como ler, escrever e mesmo falar. “O melhor a fazer”, aconselhava, “é se afastar do convívio dos homens e viver isolado na natureza”.

“Arquétipo”. O papel de levar a filosofia cínica a seus “extremos” seria protagonizado por Diógenes, que se tornaria mais famoso que Antístenes, seu mestre, e passaria a ser visto como o “arquétipo (modelo) de filósofo cínico”.

O que, de fato, o cinismo prescreve, aponta Magee, outra coisa não é que um modo de vida caracterizado principalmente pela oposição – drástica e extremada – às leis e valores vigentes na sociedade humana. Tal oposição nasce da avaliação, por parte dos dois pais da filosofia cínica, de que “é impossível conciliar essas leis e valores com as exigências de uma vida segundo a natureza”. 

É sabido que uma das coisas que, no tempo de Antístenes e Diógenes, “abriam eco” em Atenas eram justamente as atitudes de total e público desprezo demonstradas pela dupla cínica (sempre com o protagonismo de   Diógenes) tanto contra convenções sociais, comodidades, apegos, riquezas, propriedade privada, casamento, governo, leis e religião, como também contra valores morais, sociais e culturais. Os dois cínicos, observa Magee, eram o que hoje chamaríamos de antissociais.

“Conduzir a vida em consonância com aquilo em que se acredita”, como aconselhavam os cínicos, sempre fôra um dos posicionamentos tradicionalmente valorizados pela antiga civilização grega, tirante, bem entendido, os extremos ou excessos do cinismo.

Há quem diga não ser justo negar que o modo de vida dos cínicos “apontava para uma distinção filosófica entre os aspectos naturais e os costumes humanos, problema que permeou todo o pensamento filosófico da Grécia antiga”, vale dizer, toda a história do racionalismo grego.