“1968 é uma obra de embutidos: por toda parte, acontece tudo”. Assim pensa a historiadora Ludivine Bantigny. E assim foi. Hoje é patrimônio francês. Em 2018, cinquentenário da revolta estudantil-operária de maio 1968, esta assume uma dimensão nova. O acontecimento inscreve-se no programa oficial da Prefeitura, Biblioteca Nacional, Centro Pompidou. Vestígios que mostram o zelo da França – e dos franceses – com o documental, o biográfico, a memória. Mas “1968 não sobreviverá como um ano zero. A impregnação de referências e experiências internacionais não é apenas um quadro ou cenário; ela celebra-se na história e na trajetória dos personagens engajados”, exalta Bantigny.
Anos 1960. Os países da Europa Ocidental desfrutam o impulso de crescimento econômico, que prolonga o progresso industrial e a descentralização impelida por governos sucessivos desde 1955. Novos operários: homens, mulheres, imigrantes. Começa a automatização de tarefas; o trabalho depende menos da qualificação ou formação. Há perdas salariais. Em 1966, as organizações sindicais CGT e CFDT aproximam-se na França, movidas pela cólera operária. Em 13 de maio 1968, aproveitam a brecha aberta pelo movimento estudantil para explodir. Greves com ocupações e sequestros favorecem a propagação rápida do movimento. Em 20 de maio, os grevistas somam 2 milhões.
O discurso também se alastra. Debates sobre os rumos da luta e das Bolsas de Trabalho, intercâmbio com outros assalariados e estudantes. Tudo em discussão – até a natureza democrática dos governos. O movimento já está internacionalizado. Uma cólera coletiva nos bastidores transborda nas ruas com os “invisíveis”: os ínfimos, os ninguém, subalternos, dominados, insubordinados, insubmissos, revoltados. Mobilizados, enfim, nessa marcha da história contestadora da lei e da ordem, em companhia de artistas, intelectuais, pacifistas, professores e jornalistas, anticolonialistas e anti-imperialistas.
Perder a vida para ganhar a vida? A revolta abriu a sociedade a novos campos de reflexão quanto à ordem patriarcal, de consumo e de trabalho. Aconteceu por toda parte: Europa, Américas e até na África, em escala mínima embora. Movimento intenso de emoção, registra ainda Bantigny. A “alegria selvagem” de quem pensa refazer o mundo, tão roto está. Alegria nos rostos em sorrisos; nas imagens de desafio, a audácia de ousar e lutar pelo reconhecimento, a dignidade reencontrada. E sobretudo o humor – nas sátiras, caricaturas, quadrinhos. Operários grevistas em Nantes tinham uma prece. Em tradução livre: “Charles nosso que está muito velho/Esquecido seja teu nome/E que tenha fim teu reinado/Seja feita nossa vontade/E satisfeitas nossas reivindicações/O dobro do pão de cada dia nos dê hoje/Perdoa nossas ofensas/Assim como nossos ofensores/Não nos deixes sucumbir em privação/Mas nos livre do mal (de tua presença)”.
“O processo de trabalho situa-se no cerne da estrutura social”, alerta Manuel Castells em A Sociedade em Rede. 1968 já entrava na era pós-industrial, não se repete. Contudo, a cólera coletiva pressupõe uma revolta futura (Eric Hazan, historiador), já que a Quarta Revolução Industrial em curso acirra desigualdades, ao mexer nos sistemas de produção, distribuição e consumo, mercados de trabalho, e novas tecnologias açambarcando tudo. São três revoluções, de fato: a industrial, a tecnológica e a de identidade digital. O mundo que os estudantes de 1968 queriam refazer está sendo refeito pelos “outros”.
A considerar ainda a política: volta do conservadorismo, suposto guardião da lei e da ordem; militarismo urbano; conflitos internos; medo do nuclear (guerra ou acidente), transformação da sociedade de consumo, agora com aposta na criação e tecnologias que assegurem exclusividade. A revolução da qualificação acelera-se também, num mercado de trabalho em mudança tão rápida quanto as tecnologias evoluem. Chegou o tempo do aprendizado de uma vida para ganhar a vida, ascender e conceder-se maiores oportunidades de trabalho estável. A senda para uma vida boa aparece (na imaginação) mais distante e difícil de trilhar. São favorecidos os afortunados pela geografia e capacitações em demanda. O sucesso está, dizem muitos, em “trabalhar com as máquinas”.
Um porvir bem complicado, adivinhamos. A notícia boa é que o progresso não para e, se dilemas políticos desafiam os governos, a tenacidade dos povos lhes dá o direito de renascer das cinzas. Sejam de Maio 1968 ou quanto tempo depois.