Bem, esse pretensioso título pode não ser apropriado, porque meu relacionamento com o homem que reverencio nestas linhas se resumiu a poucos encontros, embora nestes conversássemos muito, ou melhor, eu ouvisse os casos que contava sempre recheados de lições. Quem realmente o conheceu foi Maria Tereza, a amorosa esposa de 48 anos que esteve ao seu lado até o último momento e, muito emocionada e amparada por dedicados amigos do casal, ao final dele se despediu.
Os amigos de João Gomes o conheciam por sua disciplina, que o tornava exigente; pela sua capacidade administrativa, que demonstrou no trato do patrimônio do Racionalismo Cristão; pelo seu caráter; pela sua paciente atenção quando precisava ouvir; pela sua ora branda, ora enérgica forma de exigir que tudo estivesse nos lugares certos nos momentos precisos. Ao primeiro contato dava a impressão de ser meio atrapalhado, mas, ao contrário, era extremamente organizado e jamais perdia o foco. Mas o conheciam também pela sua pressa, pelo seu “é para hoje, para agora”; por um ou outro rompante de irritação que logo se esvaía, trazendo de volta o homem ponderado, compreensivo e delicado no trato com os que o cercavam. E se esses poucos momentos de irritação surgiam era porque algo lhe parecia errado. Então, ele não resistia nem se controlava, porque era condicionado à perfeição, não aceitava o mínimo desvio, não tolerava a quebra de disciplina.
Durante muitos anos João Gomes foi o organizador das caravanas da Casa-Chefe a outras casas racionalistas cristãs em ocasiões de reuniões comemorativas. Era ele o responsável pelas viagens e, em consequência, pelos seus horários – partidas, paradas, chegadas, refeições, retornos. Contam que certa vez, de tão obcecado pela disciplina, determinou a partida do ônibus, deixando no Rio a irmã, que se atrasara. Alguém a levou de automóvel até um ponto na estrada em que o ônibus da caravana parou para que ela embarcasse. Houve protestos, reclamações por aquela atitude inusitada: onde já se viu deixar a própria irmã na plataforma de embarque por causa de um atraso de nada? João Gomes esperou a tempestade passar e, muito calmo, apenas disse, em tom já de advertência: “horários estabelecidos devem ser cumpridos”. Era assim João Gomes.
Meu primeiro contato com João Gomes foi em 1997. Fui levado à Casa-Chefe pela colega de redação Clecy Ribeiro, cria do Racionalismo Cristão e articulista de A Razão. Ela me apresentou ao Dr. Humberto, que chamou o fiel escudeiro. Foi uma conversa relativamente breve entre nós quatro e ficou acertado que eu passaria a editar o jornal do Racionalismo Cristão. Dr. Humberto explicou a finalidade da publicação, falou sobre o material que eu passaria a receber e me entregou alguns originais. João Gomes entrou em cena, tratamos de cifras numa conversa rápida, mas fértil. Era a sua praia.
A partir daí foram contatos mais intensos e prolongados, porque eu me reportava tanto ao Dr. Humberto quanto a ele, diretor do jornal, e nesses encontros foi consolidando-se a amizade.
Eu me informava sobre ele, e ouvia sempre comentários elogiosos, que convergiam para um fato que o distinguia: João Gomes era o homem das galáxias em questões de receber e pagar. Era geral o comentário de que reerguera as finanças do Racionalismo Cristão quando sacudidas no período de maior descontrole da inflação no país. Não foi por acaso que Dr. Humberto, na presidência física do Racionalismo Cristão, tendo-o como vice-presidente, o chamou de seu Luiz Thomaz, numa referência à assessoria financeira a Luiz de Mattos na implantação do Racionalismo Cristão.
Nas palavras de Amílcar (Niterói), João Gomes não foi apenas o liberador de verbas para as obras físicas de manutenção e até de construção de casas racionalistas cristãs, mas era quem percebia a necessidade e o momento exato de execução dos reparos, consertos e adaptações para melhor receberem o público. Quando, em nome da Casa-Chefe, assumia o compromisso com uma obra, ele acompanhava seu desenvolvimento e cobrava de engenheiros, pedreiros e serventes o avanço e a qualidade dos trabalhos executados. E também aí era intransigente com os prazos estabelecidos.
Agora, lá estava o corpo de João Gomes. Em torno, parentes e amigos que foram despedir-se dele. No meio daquele povo eu rememorava nossos encontros, nossas conversas, suas lições, enquanto esboçava o texto que deveria preparar para A Razão; era o meu trabalho, tinha que conciliar a reverência ao amigo e a atividade profissional. Comecei, então, as entrevistas, e o resultado foi unanimidade: João Gomes tinha sido um homem especial, carregado de qualificativos.
Ronaldo, o filho, resumiu a figura de João Gomes: exemplo de caráter, dignidade, extrema responsabilidade, dedicação à família e à filosofia racionalista cristã. Deixa um legado de postura moral. “Tudo que sou devo a ele”, afirmou.
O novo Código Civil Brasileiro estabeleceu prazo para as entidades sem fins lucrativos se enquadrarem às novas exigências, e aí também atuou de maneira destacada João Gomes na elaboração o Estatuto do Racionalismo Cristão, auxiliado nesta tarefa por Marluce Rodrigues, esposa do Dr. Humberto e secretária da Casa-Chefe.
Joaquim Ferreira, de Brasília, acrescentou uma qualidade às tantas atribuídas a João Gomes: era excelente cozinheiro, esta certamente trazida do tempo em que era proprietário de uma padaria e restaurante.
O pitoresco envolvendo João Gomes foi lembrado pelo diretor da Diretoria de Ação Doutrinária, Wilson Carnevalli Filho. Ele contou que, numa solenidade na casa racionalista cristã da cidade do Porto, Portugal, João Gomes deveria compor a mesa do estrado, mas ninguém o encontrava. Estava em cima da hora para o início da reunião e alguém sugeriu que o irmão gêmeo de João Gomes, Antonio, ali presente, fosse convidado para substituí-lo. Dada a semelhança física, ninguém notaria a diferença. Em cima da hora, porém, eis que reparece o “desaparecido”. Foram muitas gargalhadas quando a combinação foi revelada. Quem mais riu foi o próprio João Gomes.
Lá se foi João Gomes, sempre com pressa. Podia ter ficado mais tempo, teríamos aprendido muito mais com ele.