O real, o virtual e a alucinação

Noventa experts de 20 países espalhados pelo mundo escolhem, o Foro Econômico Mundial e a Frontiers Media, de jornalismo científico, divulgam. São dez as tecnologias em alta, neste 2023. Num relatório em que as projeções alongam-se apenas por três a cinco anos, destacam seu potencial transformador: aceleração da conectividade global, convergência dos mundos físico, biológico, digital. Ascende a IA, Inteligência Artificial, apresentada como um faz-tudo, mas que fica no ‘quase’, mesmo assim com senões. Todavia, cercada de tanta celeuma, leva a controvérsia também à ONU – suposto resolvedor das coisas mundiais –, em meio a vozearia assustadora sobre um cenário de falso crível. “Futuro sem futuro nem verdade”, apregoa o neurocientista Miguel Nicolelis.

 A lista das 10 Mais (Top 10 Emerging Technologies 2023) desvenda preocupações com o meio ambiente, agricultura, assistência à saúde (do homem, plantas e animais), transporte sustentável e computação de energia zero, provida pela IA, sobretudo nos grandes centros de processar dados. Atém-se aos setores de maior impacto nas populações, em sua busca de vida melhor. Baterias flexíveis servem bem à saúde; implantes, por exemplo, com materiais mais confortáveis. O metaverso, que partilha espaços virtuais e ajuda a consumir IA, seria indicado para a saúde mental, mas são questionáveis a privacidade e os direitos humanos. Para a aviação – carbono zero ainda longe –, recomenda-se combustível de recursos bio e não biológicos. Vírus planejados para mudar as funções das bactérias tratarão doenças do homem, plantas e animais. Sensores do tamanho de uma agulha, cravados em drones e tratores, irão detectar e transmitir dados sobre colheitas. Mapeamento molecular de processos biológicos inobserváveis desvendará mistérios da vida. Materiais flexíveis serão os de uso na interface máquina-sistema nervoso. Etc. etc.

Na IA, a aposta maior. Duas vezes na lista. Uso em uma miríade de aplicações, em escala aberta. Talvez a de maior ressonância seja a aplicação generativa. Gera textos, imagem, som e áudio – e perene dor de cabeça. Deepfake, sua alcunha. Fake news são só um arremedo. É uma tecnologia de dupla função. Traz benefícios no cotidiano, arquitetura e engenharia por exemplo, mas é discutível e escorregadia em fins políticos e militares. Amplia-se, assim, o debate. Ético/moral, quanto à conduta do homem, face às tentativas de tornar possível a impossível capacidade de a máquina pensar e tomar decisões. Tecnológico, porque gera rupturas e conflitos, aumenta o fosso de desigualdade. Geopolítico, com a corrida competitiva de conhecimento, influência, manipulação e polarização das sociedades. Trans-humanista, ditando que a inteligência humana será superada, irremediavelmente, pela artificial. Fim do homo sapiens? Seus pregadores acharam, no Vale do Silício, um bom lugar para ensino esclarecedor (ou marqueteiro) na criada Universidade da Singularidade, nome pelo qual designam o momento, hipotético, da trans-humanidade.

É no setor militar, porém, o veio mais polêmico. Não são só as armas em uso, ou as “bolhas” de alertas e ameaças. Piora a tensão quando se projeta delegar à máquina a responsabilidade pela tomada de decisões, a expensas da Ciência e seu brado: há funções humanas que a máquina não pode substituir. Em elucidativo artigo [tomdispatch.com/ai-versus-ai], Michael T. Klare fala de generais-robôs, em lados rivais da frente nuclear. Apanhados na armadilha de erros inexplicáveis nos programas sobre ataque iminente, os computadores “alucinam”; lançam uma guerra-relâmpago. Tal qual o pânico e as falências-relâmpago em Wall Street, maio 2010. Pode acontecer. O Pentágono está empenhado em conectar por IA seus dois sistemas de comando e controle nuclear, embora passíveis de fugir ao controle, dado a “imaturidade” da tecnologia (conforme admite). A China preocupa-se em detectar as vulnerabilidades do sistema rival, que lhe permitam desfechar ataque preciso. Alucinações digitais imponderáveis.

Por suposto. Como contesta Nicolelis, a IA nem é inteligente nem artificial, mas um algoritmo programado. Não há como terceirizar decisões para a máquina, decidir é um processo de seleção natural, tarefa da mente humana. “Somos sistemas analógicos, imersos na lógica digital”, ressalta. Cientistas, como ele insubmissos, ao ver seu trabalho apresentado numa bandeja de reduzir custos e aumentar lucros, deslancham agora um movimento internacional para o “renascimento humano”, com o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro. Bem a tempo. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o mundo pós-pandemia deixou 1 bilhão de doentes mentais à deriva. Alucinações neurais multiplicadas. 

A partir dos anos 1950, primórdios da IA, os multiprocessadores chegaram à conectividade com neurônios artificiais, em máquina separada. Nos 1960, destaque para dois programas, simulando um terapeuta e um paranóico. Nenhum chegou ao rótulo de inteligente. A década de 1970 leva o foco aos programas testados em ambientes artificiais, denominados micromundos. Sucesso limitado. Dos 1980 em diante, atualiza-se o nome para nova IA. Esta rejeita a criação de modelos enlatados da realidade (os micromundos) e postula: o mundo em si é o melhor modelo, vamos tentar este ambiente.

Tais as grandes abordagens da IA, para entender como as pessoas aprendem e recordam. Reconhecidamente falhas, as pesquisas vingam, contudo, quanto aos objetivos comerciais. Ninguém foi capaz de moldar os sistemas nervosos, sequer do mais simples animal invertebrado. O que queremos ser? Essa a pergunta a que se impõe Nicolelis, com resposta pronta: o vício digital está mudando o cérebro do homem; sua escolha fica entre tornar-se um mero zumbi digital orgânico ou manter seus atributos, visando ao bem comum. Em que ponto o computador seria considerado um ser que pensa e, se assim for, que condições satisfazer para assim ser descrito? Essa a pergunta a que se impõe o linguista Noam Chomsky.

Aposta final: na Natureza. Soberana, reina sobre tudo e todos. Responde, com a mudança do clima e desastres consequentes, ao inimigo tecnológico e beligerante que a castiga. Em risco, a segurança interna (e física) de países e regiões inteiras. Os foros de discussão multiplicam-se, a concordância tarda, a Terra vai esquentando… Alucinações naturais inevitáveis.