Valores sob as lentes

Eis que o tema valores retorna ao topo de nossas preocupações e julgamento. Faz parte da condição humana tentar dar sentido à vida, sobretudo quando em crise. Valores implicam crenças, fé, atuam nas decisões que o homem toma e, destas, despontam heróis, indecisos ou omissos – a partir de escolhas individuais e coletivas.

Luiz de Souza, em A Felicidade Existe (edições Centro Redentor, 1962), evoca a plêiade de almas ricas em conhecimentos especializados, desprendidas, simples, devotadas e pertinazes, que vêm encarnando e projetando-se, até com inventos surpreendentes. Ecoa no agora dos servidores da saúde, valorizando sua abnegação e desprendimento e, mesmo, coragem: a de cumprir o dever e revelar-se nestes grandes momentos de exposição ao risco.

O teólogo Leonardo Boff nos propõe duas dimensões fundamentais da existência humana: o cotidiano prosaico, enraizado, limitado – a galinha; a abertura, a mesma vida, mas com vontade de voar, o ilimitado – a águia. “Todos os seres vivos nascem, crescem, maduram, envelhecem e morrem”. Um curso “irrefragável, uma passagem alquímica para um estágio mais alto e mais complexo”.

Como amenizar a trajetória? Para Boff, o grande desafio é criar condições de aflorar o arquétipo da águia. Os poderes mundiais persistem em manter o ser humano na situação de galinha, constata, cerceando o voo da águia. Ressente-se, assim, a humanidade de solidariedade, compaixão, cooperação, convergência de energias para chegar ao bem comum. E de valores de respeito à dignidade do corpo, defesa da vida, amor à verdade, combate à corrupção, guerras, violência. “Valores que nos tornam sensíveis ao novo que emerge, com responsabilidade, seriedade e sentido de contemporaneidade”.

Onde está o bem comum? Estudo do Fórum Econômico Mundial, em parceria com a Bocconi University, detém-se em alguns valores julgados essenciais para prover uma base de justiça social e crença nas instituições, tão desestimadas. O tema remete à história do ser humano, bastante cultivado lá pelos idos de Aristóteles e Platão, e fala de partilha, cooperação – e os correlatos confiança, credibilidade, segurança.

A realidade lhes dá as costas. A discriminação traz sequelas crescentes. Relatório da Oxfam Internacional (inícios de 2020) mostra a pobreza em números simples: 2.153 bilionários no mundo com renda cumulativa maior que 4,6 bilhões de pessoas. Um dado que ilustra o setor finanças, sem detalhar a questão do capital humano, o valor da força de trabalho, em plena revirada.

Duas vias desafogam nas relações internacionais, segundo o professor Bertrand Badie (Sciences Po). A da contestação põe tudo em causa, inclusive a ascensão individual; a da aproximação vê o Estado além de seu próprio espaço e faz assomar o valor da união. Como a regionalização em curso na Ásia, sem aspirações a disseminar seu “Evangelho”. Fruto da já iniciada desglobalização, com aplausos para o valor segurança, se der certo. Muito está em experimento. Por exemplo, as cadeias de abastecimento via vídeo chat. Um meio a mais de levar o trabalho (digital) para casa e propiciar o emergir de outro valor hoje inconteste: a inclusão digital e, com ela, justiça social.

Necessária para criar oportunidades justas de emprego, aprendizado, acesso a serviços essenciais – e, claro, informação – infelizmente, o efeito colateral da pretendida igualdade digital caminha pari passu: a falta de infraestrutura de muitos países. Ciência e aprendizado de tecnologia sofrem com a falta de recursos, fuga de cérebros e outros males crônicos de governanças domésticas.

No interminável fio de nós a desatar, a governança (em qualquer nível) e as instituições globais falham em demonstrar valores de solidariedade e cooperação, além do blablablá. O sistema internacional anômico, como o define Bertrand Badie, tem a ver com a exclusão do fraco, pobre e dominado do jogo normativo. E, pior, “busca legitimar os grupos de conivência afins, conforme a esmagadora parcela que detêm no PIB mundial”. Para os céticos, ou esclarecidos, a governança global não tem chance de funcionar se deixar alguém à porta.

A boa nova estaria na queda da poluição, já pelo retarde da atividade econômica, já pela restrição ao transporte. Matthias Horx, futurologista, 65 anos, acredita que isso irá injetar mais solidariedade à sociedade para que aprenda a viver com menos. Indago eu: seriam a aviação, ora em purgatório,  ou o efeito dito perverso das aglomerações (um nanésimo) os grandes culpados?  A má nova (ou velha) corrobora experiência do teórico Bazon Brock, 83 anos: o povo nunca aprende.

Enfim, pensar no bem comum já é um ponto de partida confluente aos interesses de todos. “Reveste-se de valor somente se conceder aos povos e sociedades atingir suas altas aspirações”, diz Boff. Como na sua metáfora da galinha e da águia, os “valorosos” terão alçado voo como águias que são e emergiram de sua condição de galinha para imergir o Sol dentro de si, e assim entrar “num novo ser e num novo estado de consciência”.

Até lá, morituri te salutant.