Xangai e algo mais

Um dos maiores portos marítimos do mundo e centro industrial e comercial da China, Xangai é também sua cidade mais populosa. Na costa do mar do leste chinês, entre a boca do Rio Yangtzé e a Baía de Hangzhou, foi um dos primeiros portos a abrir-se ao comércio ocidental. Desde a vitória comunista de 1949, contudo, agigantou-se no abastecimento da demanda interna industrial, sempre crescente. Passou por extensivas mudanças físicas: subúrbios industriais, complexos habitacionais, parques, jardins. Arranha-céus (o maior com 457 metros) dominam a paisagem de modernização. O processo mescla ou combina grande força de trabalho altamente qualificada e tecnologicamente inovadora, muito voltada à informática. Uma indústria leve, a pleno vapor desde os anos 1970, reduz poluição, alivia congestionamentos de tráfego e compensa a escassez de energia e matéria-prima.

Foi na dinastia Song (960-1126) que Xangai transpôs o torpor do atraso. Tornou-se um centro pesqueiro isolado e acabou por desenvolver uma economia agrícola, com a migração dos chineses fugidos dos mongóis. Na dinastia Ming (1368-1644), impõe-se a indústria do algodão-e-seda, o tear. Só depois da derrota na primeira Guerra do Ópio (1839-1842), a cidade rendida abriu-se ao comércio sem restrições. Britânicos, franceses e americanos apossaram-se de algumas áreas, usufruindo direitos especiais e privilégios, enquanto aos japoneses cabiam as concessões. Bancos e casas de comércio explodiam em 1895.

Superados o revés de 1949 e outros dissabores, a cidade chega aos anos 2000 como um ímã para investimento externo direto. Ligada ao mercado imobiliário, traz fama por seus símbolos arquitetônicos: a torre de tevê Pérola Oriental, a ponte do Rio Yangpu e um arranha-céu de 94 andares, bem no meio da cidade. Talvez pela natureza do investimento, apenas dois grandes bancos disputassem o espetáculo – o Banco da China e o Banco de Construção da China. Mas chegou um terceiro, tão ambicioso quanto, o Novo Banco de Desenvolvimento (conhecido como banco dos Brics), voltado ao investimento, tanto para o setor estatal quanto para o privado.

Cesta de moedas. Tal como sua sede, o novo banco, criado em 2014 no Ceará (quando da 6ª edição dos Brics), também passou por um período de sonolenta paralisia. Aconteceram imprevisíveis. O redespertar chega neste 2023, com palmas dos investidores, uns 50 ou mais, todos de perfil top: da Ásia, Europa, Américas. Projetos ‘verdes’ encampam a essência de uma política financeira de cooperação: com bancos nacionais de desenvolvimento, bancos regionais e multilaterais, instituições financeiras outras e agências das Nações Unidas. “Levantaremos fundos nos mercados mundiais onde quer que seja, em diferentes moedas, quais o renminb, dólar, euro. Também buscaremos financiar nossos projetos em moedas locais para fortalecer os mercados domésticos e escudar nossos credores dos riscos de flutuação das taxas de câmbio”, disse Dilma Rousseff, ao assumir o mandato presidencial até 2025. Palmas para o avançar do dito pluralismo, em meio a muito estardalhaço quanto a uma “desdolarização” ainda longínqua. Até porque o uso de outras moedas fica restrito a comércio e operações bancárias. Mas, aberto a quem se interessar, o novo banco já ganhou Bangladesh, Egito, Emirados Árabes Unidos, Uruguai. E, na fila, Irã e Arábia Saudita. O que enseja o setor energético, sempre na crista, a recriar – petroyuans em vez de petrodólares.

Em pauta, a ideia lançada em 2018 de uma nova moeda baseada na cesta de moedas dos Brics, R5: real, rublo, rúpia, renminbi, rand. Eventualmente, envolver outras moedas do grupo que cresce. Yaroslav Lissovolik [russiancouncil.ru/en] define as vantagens: menor exposição a risco, inclusive geopolítico, e redução dos custos da excessiva dolarização da economia mundial. Já existe, inclusive, um formato ou modelo de aliança pancontinental, envolvendo a União Africana, a Comunidade de Estados Latino-Americanos (Celac) e a Organização para Cooperação de Xangai (SCO). O que não afastaria os Brics de outros blocos regionais, a exemplo do Mercosul ou a Área de Livre Comércio Ásia-China.

Estamos de fato na vanguarda de transformação da geoeconomia? Quem bem sabe do assunto, e sobre ele já se ocupa com afinco, há mais de uma década, é Sergei Glazyev, ministro da Integração e Macroeconomia da Comissão Econômica Eurasiana, em Moscou. Conforme relato ao jornalista Pepe Escobar (16 de março, tv 247), o congelamento (por sanções dos Estados Unidos) das reservas cambiais no exterior, sobretudo da Rússia, minou o status do dólar, euro e libra como moedas globais de reserva. O que acelera o desmanchar da ordem mundial baseada no dólar. Glazyev imagina um caminho longo, com fases de ajustes aos novos mecanismos. Só na etapa final vingaria a nova moeda de pagamento digital, configurada em acordo internacional. Uma moeda nos conformes dos países envolvidos, com peso por parcela no comércio internacional, por tamanho de território e população, e seja lá o que avaliar. Segundo Glazyev, isso permitiria uma zona dolarizada concomitante à zona do Sul Global, majoritário. Transações internacionais com a nova moeda comercial; moeda nacional para os negócios internos.

Já lá vai meio século. Foi Richard Nixon na Casa Branca quem fechou a janela mundial do ouro e escancarou a do dólar. Os Estados Unidos não se sujeitariam mais a “ter de manter a paridade do dólar frente ao ouro ou nenhuma outra coisa”, lembra o autor Peter Gowan (A Roleta Global). “A economia se virou dessa forma em direção a um padrão dólar puro”. Lembra ele que, “nas sublevações do início da década de 1970, cada vez mais países foram forçados a abandonar as tentativas de manter taxas fixas de câmbio entre as suas moedas e o dólar”. Uma década de muita manobra financeira e muito embuste, e o sistema dólar/Wall Street consagrou-se dominante, apesar da City londrina e de outras moedas, como o marco alemão. Entre outros méritos, o preço do dólar serviu como meio de atingir fins.

Jim O’Neill, ex-ministro do Tesouro no Reino Unido, fala de “ameaças percebidas” ao dólar, mais frequentes desde os anos 1980. E que, obviamente, se e quando o status do dólar entrar em xeque, aí sim, é porque os Estados Unidos terão deixado de ser a maior economia do mundo. Aconteceu com a libra esterlina na primeira metade do século XX, e esta aguentou até bem depois de o Reino Unido ter sido superado economicamente. São anos de especulações e falsos começos, no dizer de Shang-Jin Wei, professor na Columbia Business School. Para a China, tornar o renminbi moeda internacional implica benefícios extras à sua própria economia, sobretudo proteger-se de eventuais crises de câmbio. O que puxa outros países para o entorno. Afinal, as sanções impostas pelos Estados Unidos sacrificam “terceiros”.

Parece que o dólar, que Glazyev chama de moeda tóxica, está mesmo na rota do compartir. Aí pelo ano 2019, empresas russas dos setores de defesa e energia já negociavam em moedas nacionais e bancos de parceiros comerciais. Agora, China e França firmam seu primeiro acordo em moeda chinesa, para a compra/venda de gás natural liquefeito. Desde 2022, a Rússia passou a usar o yuan (renminbi) e o Brasil aceita fazer o mesmo, a partir de agora, conforme os acordos com a China. Um aceno a países africanos e árabes. Até a Arábia Saudita que, desde 1974, ligou o riyal ao dólar, em troca de armamento. Em 2000, Venezuela e Iraque tentaram fugir do petrodólar. O Iraque não escapou da invasão, mas a Venezuela obriga-se à recusa total ao dólar, desde 2017. Em 2003, o Irã já preferia o euro. Assim, a globalização toma atalhos. O Novo Banco de Desenvolvimento e os Brics são um bom exemplo no Sul Global. No Norte, os Estados Unidos confrontam seus bilionários de Wall Street clamando por volta às origens. Ou seja, produção e consumo com empresas de volta à casa.

O mundo é como é, apregoa um amigo sábio. Ensaio e erro; menos acertos. Posto que ninguém se propõe salvar o mundo, mas a si no seu ambiente próximo. E olhe lá…