Contornos da Independência

“Na grande obra da prosperidade, do engrandecimento e da independência do Brasil, não há lugar para um culto só e espaço para um só pedestal, há largueza bastante para muitos cultos e altura suficiente para cem estátuas”. Assim reza Sílvio Romero em sua esmiuçada História da Literatura Brasileira (5ª. Edição, 1954), na qual presta tributo a Dom Pedro I, mas sobretudo a José Bonifácio de Andrada e Silva, como de fato Patriarca da Independência. De todos os políticos brasileiros até meados do século XIX, ‘o velho’ será o maior, “pela energia que desenvolveu no seu curto governo, comprimindo os excessos liberalizantes e dispersos de um lado e as pretensões absolutas e recolonizadoras de outro…”

Erudito, poeta, estadista, uma vida dividida entre Brasil e Portugal (e mais França e Inglaterra), figura proeminente na transição Colônia-Império, notável ator da emancipação e da Constituinte. Dois pequenos escritos ali apresentados dizem o quanto é grande: Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil e Representação à Assembléia Constituinte do Brasil sobre a Escravatura. O lado negro da sociedade brasileira…

Desta campanha, outro político e historiador, José do Patrocínio, deixa “sulco profundo”, diz ainda Romero, nos ‘antes e depois’ da Independência. Um mestre da palavra escrita. Um eloquente da palavra falada. Para os romances levou as questões sociais, com suas injustiças e arbitrariedades. Da tribuna, elevou o tema abolicionista a debate sem trégua, marcando também o jornalismo de então. A literatura em formação desde o descobrimento, voltada ao canto da natureza, busca caminho autônomo; faz-se política pela independência e volta-se a atividade literária também às Ciências.

A Escola Mineira. “Como quer que se lhe chame, foi a Escola Mineira o movimento mais importante do século XVIII e, em certos ângulos, de toda a literatura brasileira…”, ressaltam os autores Waltensir Dutra e Fausto Cunha, em sua Biografia Crítica das Letras Mineiras (Instituto Nacional do Livro, 1956). Citam os quatro grandes poetas que dele participaram: Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga (líricos) e Basílio da Gama (épico). Um movimento de profundo sentimento nativista e nacionalista, que transcende para a política com a Inconfidência Mineira e ao qual se soma outro lírico, Inácio José de Alvarenga Peixoto, de obra bem menor, pois parece que se perdeu quase tudo. O elemento emoção é uma novidade nessa poesia – que calou fundo. O século XVIII teria ainda a registrar a agitação literária do romantismo alemão que, remotamente, iria repercutir na poesia de Gonçalves Dias, “o grande poeta romântico do Brasil, erudito que sabia imitar a poesia portuguesa medieval, inventor de um folclore político índio”, segundo Otto Maria Carpeaux, outro grande estudioso da literatura universal.

A época ajudava – influência da Revolução Francesa e da Europa, em geral (Inglaterra, Alemanha). Ideias liberais à solta. Victor Hugo contra a realeza ressoava por toda parte. Ouvido no Brasil, o movimento hugoniano perdurou pela Guerra do Paraguai e toda a primeira campanha abolicionista.

Castro Alves (1847-1871), com seus cantos emancipacionistas, é agora o maior dos ‘condoreiros’, “altivos como as grandes aves dos Andes”, como os descreve Carpeaux (História da Literatura Ocidental, Editorial Alhambra, 1985). Considera Castro Alves importante, sobretudo, como poeta de uma transição social; do feudalismo escravocrata ao liberalismo burguês.

Afrânio Peixoto nomeia a segunda metade do século XIX uma época de grande significância para o Brasil: uma geração de escritores entrando na maturidade intelectual, circulação clandestina de livros proibidos, o país agitado por questões políticas, sociais, religiosas – e até militares. A partir da segunda década de 1800, surgem centros culturais, escolas jurídicas e literárias. Depois da Independência, a atividade política excede na oratória parlamentar e ascende na sociedade o mestiço, “o brasileiro por excelência”, como quer Romero. A entrada do século XIX já prenunciava os 32 anos em que tudo ocorreu (1808-1840): chegada da Corte, independência, reinado de Dom Pedro I, abdicação, revoluções nativistas. Depois da dissolução da Colônia, o período regencial executa, na esfera literária, a dissolução do classicismo. O Romantismo no Brasil chega em 1836. Mas os poetas mineiros já haviam ensaiado o Romantismo na segunda metade do século XVIII, a partir de 1750 –, com as ideias da Inconfidência, com os estudantes de Olinda e São Paulo.

Era o século dos clássicos, da imitação – obras tomadas aos poetas portugueses, italianos e espanhóis, que as tomavam aos franceses. Ainda assim, esboça a resistência. A economia está em desenvolvimento, jornalismo e literatura irrompem. Muita literatura, pouca qualidade. Contudo, são obras originais, ao estilo simples, popular, contra a injustiça, a opressão, o conquistador. Vida nacional em muito, muito verso. O português face ao índio e ao negro, etnologia, história. O Romantismo, às portas do século XIX, iria explodir no século XX.

Língua e nacionalidade. Na passagem para a fase moderna, o literato brasileiro constata: criar uma nova poesia e arte realmente nacionais esbarra com o mais difícil dos problemas da época, qual o da língua. Lembra Carpeaux que as nações criadas pela imigração e colonização requerem novas línguas. No Brasil, obviamente predominou a influência portuguesa. “Depois veio desasada reação que tudo maculou – estética e gramática. Sob o influxo de um falso nacionalismo, a língua desce quase aos últimos degraus da incorreção. Nem sequer era estudada como preparatório!..” Reagiu, à época, dentre outros, José de Alencar com uma prosa de lavor artístico, correção e elegância, segundo Romero. Depois, Machado de Assis, Rui Barbosa.

A obra de José de Alencar (1852-1877) marca. Facilidade de escrever, vocabulário rico, mas simples, colorido, imaginativo. Fascinado pelas Letras, a política acabou por atraí-lo, e aí também é destaque. Posso dizer que serviu ainda à formação de professores, por mérito da ilustre mestra Judith Paiva e Souza, à frente de um grêmio literário criado em sala, do qual me concedeu a presidência e O Guarani. Livro-relíquia na minha estante, desde 1951. Num ensaio sobre o movimento modernista, a ele Mário de Andrade assim se refere: “… o Brasil hoje possui, não apenas regionais, mas generalizadas no país, numerosas tendências e constâncias sintáxicas, que lhe dão natureza característica à linguagem. Mas isso decerto ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão”.

Cativo 300 anos, privado de imprensa, do debate de idéias, institutos de ensino (com raras exceções), despotismo, censura, o Brasil de D. João VI fez o povo folgazão, o dopava de festivais, com farto espetáculo coreográfico para todos os dias de festejos. 1750-1830, fase que aqui chamo dos contornos da independência, é tida por Romero como de velhos cronistas de um repositório dos acontecimentos. À história cabe o galardão. E este galardão os inconfidentes compartilham. Quatro homens, diz Sílvio Romero, que, longe dos grandes centros do pensamento, “amordaçados pelo despotismo colonial”, conceberam a independência política e literária do país.