Crédulos e ansiosos

Demarco o espírito do tempo em Edgar Morin, década de 1960, convulsão revolucionária em torrente respingada, história da Cultura de Massas no Século XX’, nos volumes Neurose (mal do espírito, mal dos mitos e a realidade) e Necrose (a decomposição num organismo vivo, qual a crise da cultura e a crise da sociedade).

Já neste século XXI, Anthony Giddens endossa: “Nossa época não é mais perigosa – nem mais arriscada – que as de gerações precedentes, mas o equilíbrio de riscos e perigos se alterou. Vivemos num mundo em que perigos criados por nós mesmos são tão ameaçadores, ou mais, quanto os que vêm de fora.”

Em sua pregação – mais de 60 livros, a maioria num martelar constante sobre o homem e seu futuro –, Morin visualiza um novo começo, de responsabilidade coletiva. Agora, em 17 de junho 2020, volta a pedir Mudemos de via: as lições do coronavírus, em que, junto com o autor Sabah Abouessalam, traça o perfil desse “eletrochoque”. “Eis-nos entrados na era das grandes incertezas”. “O futuro imprevisível está hoje em gestação”. “É tempo de mudar de via”. Uma via, almejam, ao reencontro de uma coerência, um sentido e um futuro. Pensar global, o homem em sua natureza trinitária – indivíduo, ser social e parte da espécie humana.

O tema fascina. O autor Bernardo Sorj projeta causas e efeitos do espírito deste tempo: “A dificuldade de enxergar como será o futuro afeta nossa compreensão do presente. Por quê? Porque quando deixam de ter esperanças sobre o que virá as pessoas voltam-se a um passado idealizado; quando os partidos políticos não oferecem respostas, lideres políticos demagógicos que se apresentam como apolíticos são glorificados; e quando as elites que personificavam os valores da razão são desacreditadas, a mentira e a ignorância são promovidas”.

Em  seu Em que Mundo Vivemos [plataformademocratica.org] analisa as “complexas relações” da democracia e o capitalismo, e dedica um capítulo ao seu próprio conceito de sociedade da (des)informação e da crise da verdade. Como a sobrecarga de informação permitida pela Internet desvia a atenção (o mesmo foco abordado pelo sociólogo francês Gérald Bronner), gerando uma visão do mundo de mal-estar e insegurança. Nem notícia, nem fato. Só um jogo do emocional de disseminação do falso, inverídico, às vezes mentira deslavada. O objetivo de informar cede à gana de desmoralizar, demonizar o “inimigo”. Assim a internet, por suposto instrumento de transparência, ganha a política e os políticos, fabricando um mergulho na corrosão da confiança. O “novo normal” – a via do pequeno círculo em que se disseminam comentários fortuitos, boatos, rumores – corrói a autoridade, num jogo pesado.

No conceito de Bronner, os mitos de complô, mais fatos imaginários, inventados ou mentiras deslavadas, estão aí para nos fazer crer em não importa o quê. Ou a forçar decisões políticas tendenciosas, em suma, a talhar uma parte do ”mundo em que vivemos” – a mesma expressão de Sorj. Em livro recente (Apocalypse cognitivo, versão kindle inclusive), Bronner enfeixa um ponto que o estarrece: de como o homem ilude-se, tanto e com tanta frequência, a ponto de sucumbir ao charme de raciocínios os mais capciosos à tona. “A face obscura de nosso cérebro”, aflorada pela “situação inédita de tempo de lazer disponível para conhecer o mundo – tal como é.“

O apocalypse aqui não é o fim do mundo, mas ameaça às civilizações. O conhecimento adquirido em turbilhão, e propositadamente deformado, refletindo faces de desatino. “Nosso espírito vítima de uma pilhagem em regra”. O homem regredindo às apetências da própria natureza, em uns mais reprimidas que em outros: sexualidade, medo, angústia, violência, narcisismo e outros avatares. Positivo nessa fake internet celebramos o cultivar do livro-acontecimento.

Na Sociologia, o acontecimento é tudo aquilo não inscrito nas regularidades estatísticas. Tem papel crucial na História, sistema cultural e na evolução das sociedades (a guerra de Hitler, a epidemia de agora). Rompimentos e crises vêm levando a civilização ocidental a enfraquecer a confiança individual, gerando uma sensação de fracasso ou despreparo (como enfrentar o mundo em que vivemos?). Em 1975, Morin falava da “crise atual” – de então e de ainda hoje: o futuro “cuja incerteza aumenta”. Em voga, a decantada morte das democracias, no trajeto da decadência da civilização ocidental. Aflui em obras inextinguíveis, mostra do homem angustiado, ansioso, inseguro, dessensibilizado, narcísico.

Há que conviver com o politeísmo de valores, como constata Sorj. A situação de pandemia, exemplifica, exige balançar entre exigências econômicas e de saúde pública, entre saúde mental e física. O convívio estende-se a “um processo de “desidentificação” da cidadania com as instituições políticas”. Em alguns casos, invade o espaço público uma polarização destrutiva. Bem a propósito, a polarização política toma o Brasil; voluteando, a mosca azul picou mais um fascinado. Risco fabricado, de duas faces desiguais entre benefícios e perigos, que exige do “consumidor” muita reflexão antes de decidir.

O passeio pelo mundo em que vivemos continua. Indaga Sorj: será a ascensão de tendências autoritárias no mundo um indicativo de novos tempos? Estaremos no limiar de um novo ponto de partida? Deixo as respostas à  busca de cada um. E uma única mensagem a todos: respeito ao homem como lei suprema das civilizações (Saint-Exupéry).