Guerra é guerra

Já não se fazem mais guerras como antigamente. Vingam agora tecnologia sofisticadíssima, métodos de guerra combinados a novos elementos: desinformação ou excesso de informação contraditória ou falsa, ameaças, ambiguidade, descrédito e desestabilização. Incerteza no amanhã próximo e remoto. Nem guerra plena nem paz. Distância é irrelevante. Não se luta por território, mas pelo domínio geopolítico e tudo que traz embutido. A Rússia acena com uma política defensiva autossuficiente, fórmula de independência. Vencer prende-se aos objetivos estabelecidos para cada round. Vladimir Putin apoia-se num escudo defensivo de mísseis hipersônicos, para além dos limites de uso de foguetes já imunes a armas nucleares. Uma “caixa preta” russa fechada, nomeia o autor e jornalista Pepe Escobar. Putin, diz, vem nutrindo sua Sun Tzu na sombra impenetrável e, ao despertar, vem a tempestade. [www.strategic-culture.org].

Guerra de nervos. A guerra na Ucrânia, uma guerra de nervos, data de 2014, quando da anexação da Crimeia (em seguida à Geórgia, em 2008). É hoje, é amanhã; é hoje, é amanhã (a invasão). Manobras, tropas, escaramuças menores. Separatistas pró-russos na região de Donbass (cidades gêmeas de Donets e Luhansk, ora independentes confirmadas) enfrentam movimento neonazista, uma jihad 2022, das empresas privadas militares Blackwater/Academi e DynCorp. Mercenários, uns 20 mil, convocados na Polônia pela CIA de nefasta lembrança na América Latina, rotulados ‘Batalhão Azov’. Parecem contos da Carochinha no século XXI, o medo europeu à Alemanha e Rússia ainda a assombrar. 

Depois das revoluções coloridas na Geórgia e Ucrânia, incentivadas pela “agenda da liberdade” dos Estados Unidos (tal como a Primavera Árabe), parece próxima a vez do Cazaquistão, onde os protestos de 2019 tiveram violenta repressão e repercussão. Em que importam Ucrânia e Cazaquistão? Afora o fato de serem cortejados pela Otan (à falta do que fazer, tenta posicionar seus hipersônicos no Leste europeu), os recursos naturais são um ímã. A Ucrânia constitui a primeira reserva de urânio da Europa e a maior superfície de suas terras aráveis. Dispõe da segunda maior rede de gasodutos da Europa e a quarta mundial. É o terceiro maior parque nuclear europeu e oitavo do mundo. Lista-se no nono lugar como exportador mundial de armamentos. O Cazaquistão tem matérias-primas das mais importantes: urânio, petróleo, gás. Mais uma posição central na Nova Rota da Seda com ramais para o Irã, Turquia e Rússia. Um chamariz para as petrolíferas já em campo. Segundo Slawomir Sierakowski, do Conselho Alemão de Relações Exteriores, ninguém sabe ao certo o que Putin quer do Cazaquistão, mas também o considera parte do ‘Russkiy mir’, o mundo russo. Universo de mentiras, decisões ambíguas, incerteza no ar. Às portas, Hungria e Polônia sofrem visões de tentação. Com cisão interna e vulnerabilidade externa, correrão o risco?

“Todo mentiroso é um Messias. Há milênios, a Rússia busca a Rússia…”. Ninguém disse melhor que Hélène Carrère d’Encausse (La Russie entre deux mondes, Pluriel 2011). Século XXI, janeiro 2000, Vladimir Putin assume o poder e acelera essa procura. Corda esticada, tensa de escolhas, interesses nacionais, um continente em dois mundos, uma imbricação de povos. O conceito europeu desponta falho, mesmo que analistas de peso como Dmitri Trenin coloquem a Rússia pós-soviética como país da Europa na Ásia. Porque falhou a aproximação com os Estados Unidos (a partir do 11 de Setembro 2001) e com os europeus, inclusive do Leste. Essas tentações asiáticas vêm de Yeltsin e Gorbachev, ambos igualmente desiludidos. E a Ásia vem de tornar-se a geografia (e geopolítica) mais dinâmica do mundo atual.

Tido como pai da moderna geopolítica, Sir Halford J. Mackinder teoriza que a Ásia Central é o pivô em torno do qual gira o destino dos grandes impérios mundiais. A natureza, ali, a isso incentiva. Se a Europa Ocidental expandiu-se via oceano, a Rússia o fez em terra. E mais: o Leste europeu é a chave para o Heartland, do qual deriva o poder da Rússia. “Quem controla o Leste europeu controla o Heartland. Quem controla o Heartland comanda a Ilha Mundial. Quem controla a Ilha Mundial comanda o Mundo”. Evolui a tese para incluir a Europa Central no Heartland. Esse seria o espaço da potência dominante. O destino manifesto do imaginário russo do século XXI encontra eco longínquo em Dostoievsky (1881), quando derrotada a Turcmênia, os russos em rota pela conquista da Ásia Central: “… porque o russo não é só um europeu, mas também um asiático. E mais: em nosso destino futuro, é precisamente a Ásia que representa nossa excepcionalidade… Na Europa éramos dependentes e escravos, enquanto na Ásia seremos os senhores”. Geografia é destino, endossa o autor Robert D.Kaplan.  

Rússia-China. Terá sido o destino, então, que aproximou Rússia e China. O trio, com a Alemanha, passa a duo – e o governo alemão pós-Merkel deixa a dança. Na versão, atualizada em 4 de fevereiro, da Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China [en.kremlin.ru/supplement/5770], tem-se uma ideia (oficial) do papel de ambos na “redistribuição de poder no mundo”. Com referências, evidentemente, aos pontos de apoio e parcerias, sobretudo a União Econômica Eurasiana e a Nova Rota da Seda. Pensamento básico: interconectar a Ásia do Pacífico e as regiões eurasianas. Não ficam de fora nem a cooperação no Ártico (energia), nem questões ligadas à pandemia (saúde pública). O momento atual merece destaque. Moscou apoia o princípio de Uma China (não a Taiwan independente) e Pequim alia-se aos russos na rejeição à expansão da Otan a Leste. Quanto ao punitivo esquema de sanções econômicas dos Estados Unidos, que atingem uns 50 ou mais países e empresas, inclusive ambos, propõem reformular o sistema de pagamentos para minorar os efeitos. 

Aumentam as pressões dos “falcões” americanos na política, bem como o interesse dos militares na trajetória das relações China-Rússia. Sob encomenda do Escritório do staff G-3/5/7 do Exército americano, relatório da Rand Corp de 2021, usando dados de 1949 a 2018 [www.rand.org/t/RR3067], traça um histórico analítico dessas relações e sua evolução. Pesquisa que incide em dois fatores principais: mudança na balança global de poder e a (re)ação dos Estados Unidos face à “ameaça percebida” da China e Rússia com poder agregado crescente. Conclui o relatório: são relações de colaboração. Ainda não chegam a extremos, de vínculos mais estreitos.

Destaque no relatório é também a questão do apoio aberto a países em choque com Washington, (Síria, por exemplo), a evolução das relações além de seus eixos (esfera de influência ampliada ao Mediterrâneo e ao Sul Global, acrescentamos). “Embora a vantagem dos Estados Unidos esteja em erosão, especialmente na Ásia, o país continua sendo uma ameaça percebida tanto pela China quanto pela Rússia…”. A postura dos “falcões” reforça as iniciativas de aproximação dual. Taxativa a Rand; “Washington e Pequim estão envolvidos numa brutal guerra comercial, que não tem sinais de ceder tão breve”. Vladimir Putin e Xi Jinping tendem a ficar alinhados enquanto perdurarem seus mandatos, em 2024 e 2023, respectivamente, embora seja factível que os prolonguem. Há projetos conjuntos em muitos setores, com motivação política e militar. E olho em outros países asiáticos, sobretudo Índia, mas também Vietnã e Japão. Pequim finca um pé no Ásia continental, Moscou nos mares do sul da China. São tendências que consideram o hoje.

Nesta colcha de retalhos há uma pretensão de, ao menos, chegarmos à proposta de Pepe Escobar: é preciso conhecer a fundo as civilizações russa e chinesa para poder saber como pensam seus dirigentes e avaliar suas ações. Recado dado.