No carnaval da covid, corona é mestre-sala

Foi assim: explodiu nos idos de 2020 a informação sobre o coronavírus. Não se sabia o que era, exatamente, mas quando as ondas começaram a expandir-se, deu-se a correria. Os mais fortes enfraqueceram frente ao inimigo, mas trataram de se ajustar à realidade e buscar as armas de que precisavam para enfrentar o mal; os mais fracos tentaram resistir, e foi aí que se perderam.

O Brasil, um desses mais fracos, quando se deu conta dos estragos, que cresciam velozmente, já a vaca tinha ido para o brejo. Talvez porque algum insano, sem qualquer base científica, afirmava do alto de sua torre de geleia que não havia o que temer, que era apenas uma gripezinha.

Aí o corre-corre, informações desencontradas. Permite ou não, proíbe ou libera, chopinho com os colegas ao final do expediente pode? Olhe a máscara! – então de uso obrigatório já em quase todo o mundo; respeite a quarentena! Cada dia surgiam mais contaminados em todas as cidades. E veio o primeiro choque para a população, quando soube que não havia leitos para todos os doentes; novo choque quando ficou sabendo que não havia também respiradores artificiais suficientes. Vamos, então, às compras no mercado internacional (bela chance de corrupção, habilmente aproveitada), montagem de hospitais de campanha,  conversa fiada pra cá, conversa fiada pra lá, enquanto o vírus proliferava, devastador.

Dias corriam e a covid parecia correr mais que o tempo, o número de mortos crescia. Ainda não se falava em fechar as escolas como forma de preservar a vida de crianças e adolescentes, que estariam mais resguardados em casa, com os pais, se possível. A esperança era a vacina, da qual todos falavam, mas sem informações concretas. Em meio a tudo isso, uma coisa incomodava muito: a incerteza sobre os desfiles de escolas de samba e blocos no carnaval seguinte – fevereiro de 2021. Em resumo, haveria ou não carnaval? 

O carnaval, que para uns é o momento de liberar energia – cantar, dançar, pular, investir em novas conquistas, não necessariamente amorosas (colombina e arlequim) – e para outros a oportunidade de extravazar frustrações, pôr em dia as lamúrias, reavaliar oportunidades perdidas (pierrô), tem um cunho essencialmente econômico, abstraídas as fantasias. O carnaval traz divisas, movimenta muitos milhões de reais, do dedal de lantejoulas aos astronômicos contratos de patrocínio, e dá milhares de empregos durante todo o ano.

Pois a realização do carnaval foi dúvida até que o prefeito do Rio de Janeiro, em decisão arrojada, decretou o prejuízo financeiro da cidade em favor da vida de seus cidadãos. Um ato proibia desfiles de escolas de samba e blocos, qualquer aglomeração assemelhada, barraquinhas de camelôs; outro proibia a entrada na cidade de ônibus de turismo, vans e outros carros de aluguel com turistas. Já àquela altura haviam chegado alguns frascos de imunizantes, de vários fabricantes e procedências. Governadores e prefeitos alardeavam o fato sem levar em conta que o Brasil tem 210 milhões de habitantes, sendo necessários, portanto, 420 milhões de doses, e o país havia recebido algo em torno de 30 mil, mas já era suficiente para futuros candidatos jogarem para a plateia com vistas a 2022.

O prefeito não perdeu a chance de marcar mais um gol: instalou um posto de vacinação no sambódromo, templo mundial do carnaval, afastando dali os sambistas, e a seguir cumpriu a cerimônia da entrega das chaves da cidade, mas dessa vez não ao Rei Momo, como tradicionalmente, mas aos profissionais da saúde representados por duas técnicas de enfermagem.

Como era de se prever, nos primeiros dias houve correria e fura-filas; depois as picadas entraram na rotina das cidades, das pessoas, da vida, enfim. Houve até quem levasse a picada a seco, vacina de vento. A TV mostrou para o mundo o que, se acredita, só acontece no Brasil. Não demorou muito e, conforme previsto, a imunização foi suspensa porque acabou a vacina. Bonito!

Chegou o carnaval, na verdade o período em que se realizaria. Era apenas uma questão de calendário. Aliás a palavra calendário saltou do dicionário, de onde só costumava sair nas passagens de ano, para o dia-a-dia. Talvez nunca se tenha falado tanto nele em tão pouco tempo.

Chegou na sexta-feira. Com tumulto e tiroteio. Houve tempo em que o carnaval durava três dias, mas foi crescendo, espaço de tempo que inspirou algumas “modinhas”. O sábado foi incorporado pelo clube da Bola Preta, porque seu bloco saía ao meio-dia, reunindo milhares de foliões. Por fim, a autoridade pública acrescentou a sexta-feira, com desfile oficial de escolas de samba menos cotadas

No período pré-carnaval circularam na internet convites para “festas”. Agentes da Prefeitura do Rio de Janeiro e da Polícia Militar cercaram as empresas organizadoras, mas a criatividade popular agiu rápido e aconteceram vários bailes pela cidade. Não foi suficiente a apreensão de instrumentos musicais e aparelhagens de som.

Barcos superlotados de foliões cruzavam a Baía da Guanabara, com os participantes exibindo-se para quem estava na orla – era o Carna boat. Em consequência, iates foram apreendidos, os proprietários, multados e os convidados, desembarcados. A bisa dizia que quem tem iate não paga multa, a punição é para quem não tem nem fusca.

Ruas centrais e praças de subúrbios, da Zona Sul e da Barra da Tijuca acolhiam arremedos de blocos de sujo, que eram dispersados pelos agentes de segurança. Grupos de bate-bolas surgiam aqui e ali, desaparecendo espontaneamente para reaparecer em outro local. No confronto com os desobedientes, homens designados para a Segurança tiveram que agir com muita energia.

Um ou outro folião solitário, com fantasia esfarrapada, passeava atrevidamente diante de policiais militares. Mas como não infringiam as normas não eram importunados.

Vendo aqueles grupos e tomando conhecimento pelos noticiários das desregradas e desrespeitosas “festas”, era de se imaginar que, puxando os blocos de desvairados, lá estivesse o coronavírus cortejando a covid, que, num voluptuoso bailado, exibia sua bandeira, sustentada por uma foice e ilustrada com duas tíbias cruzadas, sob um crânio descarnado. Atrás do alegre e traiçoeiro  casal carnavalesco, as pequenas multidões seguindo por um caminho cujo final poderia ser o falado sete palmos de terra. Com muita sinceridade, espero que não seja, mas temo pelos quase infalíveis ditados da bisa. Ela costumava dizer: “quem procura acha.” Pois que não achem!

Brasil afora a escolha de locais para as reuniões proibidas foi fruto de muita imaginação. No Rio Grande do Sul os foliões reuniram-se em um cemitério; em Minas Gerais, em ônibus. No Rio de Janeiro, em um Brizolão e numa casa de três andares no Vidigal.

De muita valia para conter aglomerações foram as barreiras sanitárias. Ao menos as cidades próximas às capitais foram preservadas, afastando os visitantes. Estes, prevendo longos engarrafamentos adicionais, preferiram deixar os carros na garagem.

Na Terça-Feira Gorda, dia em que o Estado do Rio de Janeiro registrou o maior número de casos de covid desde o início da pandemia – 8.385 – a capital fluminense teve mais uma noite de aglomerações, ruas cheias, festas lotadas e desrespeito às normas sanitárias.

Em tempo: nas festas e aglomerações em geral, a máscara foi substituída pela cara limpa e o álcool em gel foi trocado por álcool de cereais e de cana a 70 e 92 graus na preparação das beberagens de praxe nessas ocasiões. (JBA)