Os muitos anos de Putin

Cinco mandatos presidenciais soam como poder consolidado nas urnas pelo povo, com um escudo nacionalista, efeito sobretudo das sanções do Ocidente. A cultura russa concede apreciar também a capacidade decisória de um líder – sob pressão – e ousar usar a força para atingir objetivos. Capacidade de adaptação ao jogo. Projetando, assim, uma imagem que quer positiva, a Rússia de Putin vai de uma democracia nascente a uma autocracia, democracia gerenciada ou democracia soberana – depende de quem vê e como vê.

Seja qual for a forma de governar, neste ano 2024 de presidência dupla, Kremlin e BRICS, há um compromisso básico com o desenvolvimento, combate à desigualdade e boa vizinhança extensiva ao Sul Global. Assim reza o projeto de expansão e consolidação do bloco (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), já agora com dez países e dezenas de candidaturas não-ocidentais. Putin tem, ainda, uma ampla agenda para a Grande Eurásia – econômica e de segurança. No âmbito global, fortalecer as velhas (se possível) e criar novas associações. Uma diplomacia de “como é para o bem de todos”, que inclui os países ainda não imunes à ordem vigente do poder hegemônico, e seus aliados.  

Apesar das críticas de centralização demasiada de poder, Putin reelegeu-se em 2004 com mais de 70% dos votos. Já circulavam rumores sobre possível mudança constitucional para permitir a reeleição (anunciada em janeiro 2020 e, finalmente, aprovada por referendo, em julho desse mesmo ano). Com certo malabarismo, prosseguiu e surpreendeu. Criou, em outubro 2007, o partido Rússia Unida para disputar as eleições parlamentares e, em menos de dois meses, ganhou 315 dos 450 assentos da Duma. Era o início da bem sucedida carreira eleitoral. Logo, o premier Dmitry Medvedev seria seu sucessor eleito à presidência, trocando de postos, com Putin iniciando um jogo político que, de novo, o alçaria à presidência em 4 de março 2012 e 18 de março 2018. Quarto aniversário da anexação da Crimeia, o pleito destravou significante alta na popularidade interna de Putin. Maioria esmagadora, clamou o governo. Irregularidades, respondeu Golos, agência independente de monitoramento. Desta vez, o dissidente Alexei Navalny foi barrado, a presença do eleitorado viu-se reduzida, mas Putin voltou a afirmar-se, pessoalmente. Com mais algum malabarismo, creio que ficará no governo per ominia saeculum saeculorum. Quanto a Navalny, há uma história de troca (em 15 de fevereiro, véspera de sua morte) pelo espião cumprindo pena de perpétua em Berlim, Vadim Krasikov, negociações envolvendo ainda dois americanos detidos na Rússia. [https://www.britannica.com/news].

Apoio cerrado. Ministros e assessores dignos de suas funções espraiam influência. A citar, Sergei Lavrov no pilar de assuntos externos e, na economia, Sergey Glazyev (2015-2019), mas sempre presente. Moscou fortalece relações – políticas, militares, econômicas – com Pequim e Nova Déli, e as expande ao Irã. Hoje, não fica país longe dessa política de aproximação, ampliada ao “Resto”, termo que explicita bem os não alinhados, subdesenvolvidos, Terceiro Mundo, ora Sul Global.

“As sanções dos Estados Unidos são a agonia da ordem mundial imperial em despedida, baseada no uso da força. Para minimizar os danos associados a isso, é necessário acelerar a formação de uma nova – integrada – ordem econômica mundial que restaure a lei internacional, a soberania nacional, a igualdade dos países, a diversidade de meios econômicos nacionais e os princípios mutuamente vantajosos da voluntária cooperação econômica internacional” – vaticina Glazyev. Crítico do Banco Central russo, ele o acusa de, conivente com as instituições financeiras de Washington, desestabilizar o rublo e relegar medidas que evitassem o impacto bumerangue das sanções até em países terceiros. Esse impacto será melhor avaliado, diz, no fim deste inverno boreal. A Rússia já estaria preparada para eventual sequestro de seus ativos congelados (mais fundos para a guerra na Ucrânia). “As perdas serão aproximadamente iguais”. [https://expert.ru/2022/02/25].

Com o debate sobre o mundo multipolar acirrado, a Rand Corp. divulga relatório (‘Evitando uma Guerra Prolongada’) em que constata: os Estados Unidos persistirão em sua estratégia ofensiva para destruir a Rússia. Mas o conflito hegemonia versus policentrismo não se resolverá na Ucrânia; há outros pontos de tensão a emergir na Ásia (inclusive Ásia ocidental), África e, eventualmente, no Hemisfério Ocidental, com Rússia e Estados Unidos em lados opostos da barricada. Tempo que Moscou dedicará ao fabrico de relações em cadeia com países de pensamento idêntico, ocidentais e não-ocidentais. Sem pressa. Seria um processo longo, tipo guerra fria, endossa Andrey Sushentsov (janeiro 2024, www.valdaiclub.org), pois que os Estados Unidos ainda têm vantagens nos setores militar, financeiro, tecnológico – e ideológico.

Uma sorte grande. Em 3 de outubro 2023, o Valdai dedicou uma sessão a Paulo Nogueira Batista Jr. (vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento de 2015 a 2017), e registra o que disse: é “uma sorte grande” a Rússia estar na presidência do banco este ano e o Brasil em 2025. São os dois países mais interessados em deslanchar a moeda comum, ou de referência, até lá. Também caberá à Rússia nomear um presidente, com mandato maior, de cinco anos. O NBD, confirma, já é um dos maiores bancos multilaterais de desenvolvimento, visto do ângulo do capital inicial. Contudo, desaponta: desembolsos lentos, projetos aprovados mas não contratados, operações dolarizadas em boa parte. Desaponta também que, à exceção da China, os bancos centrais do grupo inicial congelassem o Acordo de Reserva Contingente, que Paulo Nogueira defende como imprescindível. O debate no Valdai explora em miúdos a alternativa BRICS. Que respostas trará Putin? Que meios propõe para harmonizar  interesses nacionais e de tantos países mais? Como promover esses tantos e tão diferentes modelos, seja em valores, seja na prática política? Serão modelos sustentáveis, viáveis, eficientes? 

Criticados pelo Ocidente pela construção de suas democracias de interpretações diversas, algumas com postulados religiosos e culturais, os não-ocidentais reclamam regimes apoiados em valores, não mais em política. Experts russos e chineses observam que o diálogo sino-russo é percebido pelo Ocidente como de países puramente autoritários e a eles contrapõe a aliança da democracia, proposta por Washington, em dezembro 2023. Mas observam, também, o fracasso dos Estados Unidos em exportar seu modelo. Até nas narrativas estaria desacreditado. Para reconquistar confiança, teria de admitir diferentes audiências e transmitir diferentes mensagens. Para os atlanticistas, contradizer que a Ucrânia é uma guerra eterna. Para os russos, ampliar as fendas na sociedade civil e “queimar” a moral dos militares. Para o Sul Global, insistir na ilegitimidade da guerra e na culpa da Rússia pelas crises de alimentos e energia. No rastro, um modelo inovador de persuasão, que o atual já não convence.   

 Tarde demais? 2024 apresenta-se como ano-testemunha de acelerada transferência da riqueza do Ocidente para a Ásia. É uma constatação de consenso. Em livro recente, O Milagre Econômico da China, Glazyev destaca o importante significado da parceria sino-russa como base da nova ordem mundial – recusa em interferir em assuntos internos, recusa em intervenção militar e embargos comerciais. O Consenso de Pequim parece atrair mais que o de Washington.